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domingo, 22 de abril de 2012

O PhD das cartas não publicadas

Professor escreve livro com artigos que não saíram no GLOBO sobre Afeganistão e até nariz de cantora


O professor José Carlos, que fez livro com todas as cartas não publicadas que enviou ao GLOBO
Foto: Rafael Andrade / O Globo
O professor José Carlos, que fez livro com todas as cartas não publicadas que enviou ao GLOBO Rafael Andrade / O Globo
RIO - Caro editor, tenho opiniões. Logo, existo. E insisto. Foram mais de cem tentativas, sempre muito educadas e com estilo. Hermético. Prosaico. Eclético. Que tal discutir o nariz fino da Negra Li ou as gravatas do rabino Henry Sobel? Ou o que predadores à espreita têm a ver om a violência do Rio? Quiçá a importância da “cor” de Obama? Ou ainda a fórmula $a = p x $s x (t2 - t1)/(T - t2), capaz de resolver de vez o déficit da previdência? O quê? Como?

— Aprendi com o meu pai, e procuro passar para os meus filhos. Você tem o direito de emitir até uma opinião errada, mas não tem o direito de não participar. Um dos maiores engenheiros químicos que existiu não era engenheiro químico, era o matemático Neal Amundson. Adoro filosofia, de descobrir qual o fundamento que está por trás de uma determinada ideia — diz o doutor em engenharia química José Carlos Pinto, diretor-executivo da Coppetec, braço da Coppe, maior centro de pesquisa e ensino de engenharia da América Latina, junto ao mercado.

Membro titular da Academia Brasileira de Ciências e pesquisador 1A do CNPq (título para pouquíssimos), ele é um dos recordistas da seção Dos Leitores do GLOBO. Em todos os sentidos. Melhor explicar. Escreveu e-mails sobre quase tudo e quase todos, pelo menos duas vezes ao mês, nos últimos anos, desde 2006. Um recorde. Só emplacou dois e-mails. Outro recorde.

De família numerosa — a avó paterna teve nove filhos e a materna quatro, que lhe deram tios e primos além da conta —, o raciocínio de José Carlos foi afiado no furdunço de um prédio no Cachambi onde moravam todos juntos. E, depois, aprimorado na academia. Pai engenheiro, o menino que levou uma vida meio nômade a reboque de obras — morou até na Floresta Amazônica — fez mestrado e doutorado em engenharia química no exterior. No que tudo isso deu: num PhD que foge ao estereótipo do PhD — sem querer reforçar o estereótipo, sem tolices de vaidade, que tem um interesse por quase tudo o que o cerca e defende o direito sagrado de todos a ter opinião e expressá-la.

— Deve ser alguma frustração — brinca. — Minha segunda opção no vestibular foi jornalismo. Dá para acreditar? Não que eu não seja feliz como engenheiro, mas não me esgota. Todo mundo estranhou, por exemplo, a minha tese de doutorado, cheia de exclamações e expressões coloquiais. Ninguém coloca exclamação numa tese de doutorado!

Não falta humor às “cartas” (são e-mails) de José Carlos, que com elas fez o livro “Lendo o jornal na varanda”, da Editora Frutos, com um subtítulo incomum: “Minhas cartas não publicadas em O GLOBO”. Na orelha, uma pequena biografia informando que o autor é do signo de câncer. A coletânea começou com uma tese.

— Eu desenvolvi a teoria de que havia padrões para carta publicáveis e outros para as não publicáveis. As publicáveis são curtas, não tem análise, apenas reverberam uma notícia e quase sempre terminam com uma frase chavão. No escândalo do Cachoeira, diria que todo político é corrupto e terminaria com um “até quando?”. Passei a só mandar cartas não publicáveis. Só duas foram publicadas. Não acho que haja um complô do GLOBO contra o leitor, nada disso. É assim porque é.

Com a palavra, a editora da página Dos Leitores, a jornalista Antonietta Ramos:

— Não há regra ou censura. Mas evitamos usar cartas longas, já que os cortes são inevitáveis, e muitos leitores não concordam. Só não vão para as páginas xingamentos ou agressões a pessoas. Também tentamos dar um espaço entre as publicações de um mesmo leitor, para dar oportunidade a todos — observa ela, que diariamente recebe 250 e-mails.

No livro do professor, há pérolas. Um exemplo foi seu comentário sobre o episódio do rabino Henry Sobel, flagrado furtando gravatas nos EUA em 2007. Ao ouvir alguns defenderem que o caso estava cercado por preconceito contra os judeus, ele lançou mão de uma parábola de futebol, outra paixão, para rebater o argumento. Para ele, era o mesmo que dividir a sociedade entre os que amam o Flamengo e os que detestam, exceto por um terceiro grupo “formado pelos que adoram sacanear vascaíno”.

De polêmica, aliás, nunca fugiu. Adora. Quando uma líder do movimento negro criticou Negra Li por causa de uma cirurgia plástica para afinar o nariz, saiu na defesa da cantora. A tal líder é que era intolerante, na opinião dele, pois não aceitava que um ser humano de pele escura fosse outra coisa que não o ícone de uma causa. “Negra Li tem o direito de botar piercing, de pintar o cabelo, de beber cerveja e até mesmo de afinar o nariz”, dizia a carta. Apreciador do Animal Planet, ele traçou em carta um paralelo entre a ação dos predadores e a violência do Rio. “Somos, todos nós, 99% dessa cidade supostamente maravilhosa, herbívoros à espera dos predadores”.

Ao analisar o rombo da previdência, José Carlos distribui símbolos para inúmeras variáveis e conclui que, “com enorme simplicidade”, uma condição de Justiça para o cidadão seria a fórmula $a = p x $s x (t2 - t1)/(T - t2). Nem tanto, professor. Simples é a moral que se extrai depois da leitura do artigo: não é qualquer jornalista que poderia ter como segunda opção no vestibular a engenharia química.
As cartas são assim, têm erudição, polêmica e fofice. Sim, ao tratar da estupidez da guerra civil palestina, lembra o amigo Isam Jaber, nascido na Jordânia, como ele especialista em polímeros, que conheceu no doutoramento nos EUA, nos anos 90. “Isam era estranhamente estrangeiro em todos os lugares do mundo e, por isso, seu passaporte era expedido pela ONU. Ou seja, por ser palestino, Isam havia sido condenado a vagar pelo mundo sem ter um local onde pudesse simplesmente chegar a estar”.

Fãs não faltam a José Carlos. Como o amigo de infância Marcus Salvador, com quem, muitas vezes, amadurece o discurso antes de levá-lo ao papel:

— É uma pessoa inteligentíssima e desprovida de barreira cultural. Num barzinho, fala de bomba atômica, das Ilhas Malvinas e do cabelo ralo do Roberto Carlos — brinca. — Uma vez, eu tive o desprazer de ir a um restaurante e escrevi uma reclamação para o Programa Furado do Rio Show, que publicou. Claro que liguei para ele, tinha que provocar.

Mestre do jornalismo e apresentador do Observatório da Imprensa, Alberto Dines observa que o “diálogo do leitor com os jornais se intensificou com a universalização do telefone e, agora, com a internet:

— É claro que o leitor tem o direito de se manifestar sobre tudo, mas quem sofreu uma agressão ou teve um direito desrespeitado tem prioridade. Se você enviar muitas cartas ou quiser discorrer sobre a primavera no Afeganistão, tem que entrar na fila — afirma.

As paixões, do Mengão ao jornal, em que se viciou lendo as páginas rosas do finado “Jornal dos Sports”, comprado diariamente pelo avô, falam mais alto. Em 2008, O GLOBO publicou um anúncio dos 200 anos do Banco do Brasil, que simulava uma primeira página do jornal falando de sua importância e história. A primeira página de verdade ficou por baixo, escondida. Uma heresia que não foi perdoada. Toma-lhe carta: “O GLOBO hoje vendeu a alma”.

— Fiquei tiririca.

Casado e pai de três filhos, José Carlos é poeta e compositor. Sonha ter seus versos lidos pelo mestre Zeca Pagodinho ou Maria Gadú. O projeto é para “ontem”. Mesmo dizendo ser um “compositor sofrível”, vai soltar a voz num CD de MPB, com a banda Intervalo.

Caro editor, da próxima vez, publica o professor José Carlos!

http://oglobo.globo.com/rio/o-phd-das-cartas-nao-publicadas-4707861#ixzz1sn9HMtyO
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