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domingo, 26 de outubro de 2008

Bezerra – O homem e o filme

Nícia Cunha
Empresária do setor de serviços; delegada da CEPA (Confederação Espírita Pan-Americana) em Cuiabá, MT.

Fonte:
http://www.cepanet.org/

O filme Bezerra de Menezes - o diário de um espírito é lento, escuro, pesado, consiste em doutrinação enfadonha. Inicia-se com um trecho do livro Brasil: coração do mundo, pátria do evangelho do espírito Humberto de Campos, reforçando o mito judaico cristão da "terra prometida, do povo escolhido". Pretensão absurda, mau julgamento de Deus, que seria assim, injusto e parcial nos seus desígnios, em relação a outras nações e povos, até mais moralizados que nós, os brasileiros.

Tem um teor falso, desde os pequenos detalhes, tais como as barbas e os bigodes de todos os personagens, especialmente os do ator Caio Blat, até o mais importante: a infidelidade conceitual ao espiritismo kardequiano, merecendo mesmo a classificação de "falsidade ideológica". Retrata apenas, e neste caso muito bem, a religião espírita implantada no Brasil.

É igualmente falso em termos de apresentação da personalidade do biografado, pois pelo que consta, Bezerra não era propriamente um "manso". Tinha suas idiossincrasias, absorvidas por uma caracterização apática, passiva, que não era a sua marca.

Não é falso ao mostrar tratamentos médicos e distribuição de remédios manipulados in loco, feitos sem controles sanitários. Prática, felizmente, em declínio no Brasil, por se tratar de exercício ilegal da medicina, embora ainda em uso sob a forma de intervenções espirituais. O ator Carlos Verezza, que personaliza o biografado, em entrevista dada ao Jô Soares, em seu programa da TV Globo, afirmou ter se submetido a uma cirurgia espiritual no Lar de Frei Luís, do Rio de Janeiro, com bons resultados.

Não é falso na caracterização de uma sessão espírita: dirigentes sisudos com falas e atitudes pastorais, trocando entre si olhares assustados, quando interpelados sobre questões doutrinárias que julgam intocáveis; ambiente místico, platéia silenciosa e não participativa, mesa com toalha branca, flores e copos d'água para o que se convencionou chamar de "fluidificação". Práticas, todas elas, não procedentes da codificação, constituindo-se em sistemas e modelos introduzidos pelo espiritismo brasileiro.

Os espíritas sempre dizem que são contra a santificação de seus vultos. Mas o filme e os depoimentos pessoais ali inseridos são pura demonstração de reverência idólatra. Seriam perfeitamente dispensáveis, pois foram ali colocados unicamente para fazer proselitismo. Apenas explicitam fanatismo, além de quebrar a linha estética do filme e o ritmo narrativo, até então harmônicos naquilo que seus diretores se propuseram a fazer.

Mesmo discordando de Bezerra em vários pontos, eu o admiro e respeito, especialmente por sua inegável bondade, pela fidelidade à sua concepção da doutrina espírita, pela coragem de haver assumido um posicionamento público que, àquela época, só lhe trazia problemas. Entretanto, acho que Bezerra fez mais mal do que bem à doutrina, em função do desvirtuamento conceitual a que a submeteu. No filme isso fica mais do que evidente na leitura feita por seus irmãos da carta que ele lhes escreveu, contestando-os quanto à sua exclusão do seio da família. Nela dá testemunho de próprio punho de sua fé em Deus Pai, Filho e Espírito Santo, em um Jesus divinizado, com missão de salvador dos homens. E pelos teores das mensagens mediúnicas que lhe são atribuídas ainda hoje continua com as mesmas crenças.

São conceitos que não constam de nenhum livro de Kardec, pois ele somente endossou o ensino moral de Jesus, desconsiderando a história canônica com seus milagres, os atributos de filiação divina e santidade absoluta.

Mesmo assim, é necessário contextualizar os posicionamentos de Bezerra. Seria demais, querer que alguém nascido no século XIX (29/08/1831) em pequena cidade do interior do Ceará, em família tradicional e católica, não tivesse atavismos e entendimentos próprios de um ambiente cristão, conforme a definição formal que é a de quem crê na Santíssima Trindade, na salvação através de Jesus, na graça do batismo para livrar-se do pecado original etc.

Afinal, aceitando o espiritismo roustainguista, Bezerra assimilou o que sua mente racional aprovou, abandonando apenas os teores mais absurdos da fé que antes professava. Sentiu-se, portanto, extremamente confortável com o neocatolicismo roustainguista. Mas, paradoxalmente, passou a aceitar as esquisitices fantasiosas de Roustaing. Deu força, portanto, à versão mística do espiritismo da qual foi o principal introdutor, sedimentando-a na FEB - e esta, nas entidades adesas -, implantando a feição religiosa neo-católica que até hoje domina o movimento espírita brasileiro e da qual resultam os fundamentalismos vigentes na maior parte de suas instituições.

Assim, minhas discordâncias de Roustaing e Bezerra não são apenas quanto às questões do corpo fluídico de Jesus e do criptógamo carnudo. Afinal, estes temas ficaram praticamente esquecidos, pelo desconhecimento da obra roustainguista. Minha ressalva é quanto ao teor místico e religioso deles oriundo, que impregnou todo o espiritismo pátrio. Neste sentido, há espíritas que são roustainguistas sem o saber: imaginam que a questão se resume nos pontos polêmicos acima mencionados, esquecendo-se de suas próprias atitudes, marcadamente religiosas. Não se dão conta de que o endeusamento de Jesus, as idéias salvacionistas, o mariolatrismo, a noção distorcida da lei de causa e efeito, o ufanismo pátrio, a pretensão orgulhosa de superioridade do ensinamento espírita, as interpretações católicas das dimensões espirituais, os posicionamentos anti-científicos que vigoram no movimento espírita derivam dos conceitos introduzidos por Roustaing e endossados por Bezerra.

Creio que seu erro foi - e o do espírita brasileiro em geral ainda é - a cristalização da doutrina espírita, tornando-a dogmática desde que transformada em religião. Ambos abandonaram os aspectos filosóficos e científicos defendidos por Kardec, que elegeu a MORALIDADE e não a RELIGIÃO como característica da doutrina, recomendando inclusive, que fosse progressiva e dinamicamente atualizada segundo parâmetros científicos.

Finalizando, acho que a película não fez jus nem ao que Bezerra teve de bom. Apesar dos esforços e das boas intenções, um desperdício de oportunidade e um desserviço à OBRA KARDEQUIANA, tão desfigurada por divulgadores que não a compreenderam.

Penso que o filme só vai agradar mesmo aos roustainguistas, conscientes ou inconscientes dessa condição.
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