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sábado, 23 de fevereiro de 2008

Da impossibilidade de uma prova cosmológica da existência de Deus

Immanuel Kant
Crítica da razão pura
Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão
Edição: Fundação Calouste Gulbenkian, 5. ed, Lisboa, 2001.

Pretender extrair de uma idéia, traçada com total arbitrariedade, a própria existência do objeto correspondente, era totalmente contrário à natureza e uma pura inovação do espírito escolástico. Com efeito, nunca se teria tentado esta via, se a razão não tivesse previamente sentido a necessidade de admitir algo necessário para a existência em geral (onde se pudesse parar na ascensão) e se, pelo fato desta necessidade ter de ser incondicionada e certa a priori, a razão não fosse obrigada a procurar um conceito que, na medida do possível, satisfizesse uma tal exigência e desse a conhecer uma existência, completamente a priori. Julgou-se encontrar esse conceito na idéia de um Ser realíssimo e, se foiutilizada esta idéia, foi somente para obter um conhecimento mais determinado de uma coisa de que já se estava, aliás, convencido ou persuadido que devia existir, ou seja, do ser necessário. Contudo, dissimulou-se este curso natural da razão e, em vez de terminar neste conceito, tentou-se começar por ele, para dele derivar a necessidade da existência que ele se destinava unicamente a completar. Daí surgiu a malograda prova ontológica, que nada tem de satisfatório, nem para o são entendimento natural, nem para sustentar um exame científico.

A prova cosmológica, que vamos agora examinar, mantém a ligação da necessidade absoluta com a realidade suprema; mas, em vez de partir, como a precedente, da realidade suprema, para deduzir a necessidade na existência, conclui da necessidade incondicionada e previamente dada, de qualquer ser, a sua realidade ilimitada e, deste modo, tudo encaminha por um raciocínio, não sei se racional se sofístico, mas que é, pelo menos, natural e que possui a maior força persuasiva, não só para o entendimento comum, mas também para o entendimento especulativo; e desta maneira traça visivelmente as primeiras linhas diretrizes de todos os argumentos da teologia natural, linhas que sempre foram seguidas e hão de sê-lo sempre, por muito que_ se adornem e disfarcem sob floreados e arrebiques. Esta prova, a que Leibniz deu também o nome de prova a contingentia mundi, é a que vamos agora expor e submeter a exame.

Formula-se assim: se algo existe deve existir também um ser absolutamente necessário. Ora, pelo menos, existo eu próprio; logo, existe um ser absolutamente necessário. A premissa menor contém uma experiência e a maior infere de uma experiência em geral a existência do necessário*. A prova parte, pois, da experiência; não é, por conseguinte, conduzida totalmente a priori ou ontologicamente; e, porque o objeto de toda a experiência possível se chama mundo, denomina-se prova cosmológica. Como também abstrai de todas as propriedades particulares dos objetos da experiência, pelas quais este mundo se distingue de qualquer outro mundo possível, distingue-se já, na sua designação, da prova físicoteológica, que utiliza, como argumentos, observações acerca da constituição particular . deste nosso mundo dos sentidos.

Mas a prova prossegue e conclui que o ser necessário só pode ser determinado de uma única maneira, isto é, só mediante um dos predicados de entre todos os predicados opostos possíveis e, por conseguinte, deverá ser integralmente determinado pelo seu conceito. Ora, só pode haver um único conceito de coisa que determine integralmente a priori esta coisa, ou seja, o conceito de ens realissimum; portanto, o conceito do ser soberanamente real é o único pelo qual pode ser pensado um ser necessário, isto é, existe necessariamente um Ser supremo.

Neste argumento cosmológico reúnem-se tantos princípios sofísticos, que a razão especulativa parece ter aqui desenvolvido toda a sua arte dialética a fim de produzir a máxima aparência transcendental possível. Vamos, no entanto, afastar por um momento o seu exame, para só pôr em evidência o artifício pelo qual apresenta, disfarçado de novo, um velho argumento, invocando o acordo de dois testemunhos, dos quais um é o da razão pura e o outro o de confirmação empírica, quando afinal é só o primeiro que muda o trajo e a voz para ser tomado pelo segundo. Para bem assegurar o seu fundamento esta prova estriba-se na experiência, dando assim a impressão de se distinguir da prova ontológica, que deposita toda a confiança em meros conceitos puros a priori. Mas a prova cosmológica só se serve desta experiência para dar um único passo, a saber, para se elevar à existência de um ser necessário em geral. O fundamento empírico da prova nada nos pode ensinar acerca dos atributos deste ser; então a razão afasta-se dele inteiramente e, por detrás de simples conceitos, investiga os atributos que um ser absolutamente necessário em geral deve possuir; ou seja, um ser que, entre todas as coisas possíveis, encerra as condições requeridas (requisita) para uma necessidade absoluta. Julga então encontrar estes requisitos unicamente no conceito de um ser soberanamente real e logo conclui: é este o ser absolutamente necessário. Mas, é claro, pressupõe-se aqui que o conceito de um ser dotado da realidade suprema satisfaz plenamente o conceito da necessidade absoluta na existência, ou seja, que este se conclui daquele; eis uma proposição, sustentada pelo argumento ontológico, que assim se admite e se dá por fundamento ao argumento cosmológico, o que afinal se pretendera evitar. Com efeito, a necessidade absoluta é uma existência extraída de simples conceitos. Se digo, então, que o conceito de ens realissimum é um desses conceitos e o único que é conforme e adequado à existência necessária, também tenho que concordar que esta se poderia inferir dele. Portanto, na chamada prova cosmológica, só a prova ontológica a partir de puros conceitos contém propriamente toda a força demonstrativa e a suposta experiência é totalmente inútil, servindo talvez somente para nos conduzir ao conceito de necessidade absoluta, mas não para nos mostrar essa necessidade em qualquer coisa determinada. Com efeito, sendo esta a nossa intenção, temos de abandonar toda a experiência e procurar entre conceitos puros qual deles contém as condições da possibilidade de um ser absolutamente necessário. Mas, deste modo, basta compreender-se a possibilidade de tal ser, para logo se demonstrar a sua existência; o mesmo é dizer que entre todo o possível há um ser que tem implícita a necessidade absoluta, isto é, que este ser existe de modo absolutamente necessário.

Tudo o que há de falacioso no raciocínio descobre-se muito facilmente, reduzindo os seus argumentos à forma escolástica. É o que vamos fazer.

Se é certa a proposição: Todo o ser absolutamente necessário é, ao mesmo tempo, soberanamente real (o que é o nervus probandi da prova cosmológica), deverá poder converter-se, como todos os juízos afirmativos, pelo menos per accidens; portanto: Alguns seres soberanamente reais são, ao mesmo tempo, seres absolutamente necessários. Ora um ens realissimum, não se distingue de outro ens realissimum em coisa alguma e o que vale em relação a alguns seres, englobados neste conceito, vale também em relação a todos. Por conseguinte, também (neste caso) poderei converter absolutamente a proposição, dizendo: Todo o ser soberanamente real é um ser necessário. Como esta proposição é determinada a priori unicamente pelos seus conceitos, o simples conceito de ser soberanamente real tem de conter, implicitamente, a necessidade absoluta desse ser. É o que a prova ontológica afirmava e a cosmológica não queria admitir, muito embora seja o fundamento das suas conclusões, se bem que de uma maneira oculta.

Assim, pois, a segunda via que segue a razão especulativa para demonstrar a existência do Ser supremo não só é tão enganadora como a primeira, mas, além disso, incorre no erro de cometer uma ignoratio elenchi, prometendo levar-nos por outro caminho e fazendo-nos regressar, após pequeno rodeio, ao antigo, que por sua causa abandonáramos.

Ainda há pouco disse que neste argumento cosmológico se ocultava todo um ninho de pretensões dialéticas, que a crítica transcendental facilmente pode descobrir e destruir. Vou limitar-me a citá-las, por agora, e deixo ao leitor já exercitado a tarefa de investigar e anular esses princípios ilusórios.

Aí se encontra por exemplo: 1. o princípio transcendental que do contingente nos faz inferir uma causa, princípio que só tem significado no mundo sensível, mas que já não tem sentido fora desse mundo. Com efeito, o conceito puramente intelectual do contingente não pode produzir nenhuma proposição sintética como a da causalidade, e o princípio desta só no mundo sensível encontra significação e critério para a sua aplicação; aqui, porém, deveria precisamente servir para sair do mundo sensível. 2. O raciocínio que consiste em concluir, da impossibilidade de uma série infinita de causas sobrepostas dadas no mundo sensível, uma causa primeira; o que nem os princípios do uso da razão autorizam na própria experiência, quanto mais tornar extensivo este princípio para além dela (até onde esta cadeia não pode prolongar-se). 3. A falsa satisfação da razão consigo mesma em relação ao acabamento desta série, em virtude de pôr enfim de lado toda a condição, sem a qual todavia não pode ter lugar nenhum conceito de necessidade; como então nada mais se pode compreender, considera-se isto como o acabamento do seu conceito. 4. A confusão da possibilidade lógica de um conceito de toda a realidade reunida (sem contradição interna) com a possibilidade transcendental; ora esta última, para operar uma síntese desse gênero, requer um princípio que, por sua vez, só pode aplicar-se no campo das experiências possíveis, etc.

O artifício da prova cosmológica tem a finalidade única de evitar a prova que pretende demonstrar a priori a existência de um ser necessário, mediante simples conceitos, prova que deve-ria ser estabelecida ontologicamente, coisa de que nos sentimos completamente incapazes. Com essa intenção concluímos, tanto quanto é possível, de uma existência real que se põe como fundamento (de uma experiência em geral), uma condição absolutamente necessária dessa existência. Não temos, pois, necessidade de explicar a sua possibilidade. Pois, se está provado que ela existe, é inútil o problema da sua possibilidade. Se queremos agora determinar, de uma maneira mais precisa, na sua essência, este ser necessário, não procuramos aquilo que é suficiente para compreender, pelo seu conceito, a necessidade da existência; pois que se pudéssemos fazê-lo não teríamos necessidade de nenhum pressuposto empírico; não, nós procuramos apenas a condição negativa (conditio sine qua non) sem a qual um ser não seria absolutamente necessário. Ora, isto seria viável em qualquer espécie de raciocínios que remontam de uma conseqüência dada ao seu princípio; porém, aqui, infelizmente, a condição que se exige para a necessidade absoluta só pode ser encontrada num ser único que, por conseguinte, deveria conter no seu conceito tudo o que se requer para a necessidade absoluta e que, portanto, possibilita uma conclusão a priori de esta necessidade; isto é, deveria também poder concluir-se, reciprocamente, que a coisa, à qual este conceito (da realidade suprema) convém, é absolutamente necessária, e se não posso concluir assim (o que terei de confessar, se quiser evitar a prova ontológica), esta nova via é também um malogro e novamente me encontro no ponto de onde parti. O conceito do Ser supremo satisfaz, certamente, a priori, todas as questões que se podem pôr quanto às determinações internas de uma coisa e é, também, por esse motivo, um ideal ímpar, porque o conceito geral o designa, ao mesmo tempo, como um indivíduo entre todas as coisas possíveis. Mas não satisfaz à questão que se refere à sua própria existência, que era afinal a única que importava; e a quem tenha admitido a existência de um ser necessário e só pretenda saber qual dentre todas as coisas deverá ser considerada como tal, não se lhe poderá responder: eis aqui o ser necessário.

Bem pode ser permitido admitir a existência de um ser soberanamente suficiente como causa de todos os efeitos possíveis, para facilitar à razão a unidade dos princípios explicativos que procura. Porém, chegar ao extremo de dizer que tal ser existe necessariamente, não é já a modesta expressão de uma hipótese permitida, mas a pretensão orgulhosa de uma certeza apodítica; porque o conhecimento do que se afirma como absolutamente necessário deve também comportar uma absoluta necessidade.

Todo o problema do ideal transcendental consiste em encontrar para a necessidade absoluta um conceito ou para o conceito de uma coisa a absoluta necessidade dessa coisa. Se um dos casos for possível também o outro deverá sê-lo, pois que a razão só reconhece como absolutamente necessário o que seja necessário pelo seu conceito. Porém, ambas as coisas não só excedem totalmente todos os esforços que podemos tentar para satisfazer o nosso entendimento, quanto a este ponto, mas também todas as tentativas para o tranqüilizar quanto a esta incapacidade.

A necessidade incondicionada de que tão imprescindivelmente carecemos, como suporte último de todas as coisas é o verdadeiro abismo da razão humana. A própria eternidade, por mais terrivelmente sublime que um Haller a possa descrever, está longe de provocar no espírito esta impressão de vertigem, porquanto apenas mede a duração das coisas, mas não as sustenta. Não podemos afastar nem tão-pouco suportar o pensamento de que um ser, que representamos como o mais alto entre todos os possíveis, diga de certo modo para consigo: Eu sou desde a eternidade para a eternidade; fora de mim nada existe a não ser pela minha vontade; mas de onde sou então? Eis que tudo aqui se afunda sob os nossos pés, e tanto a maior como a mais pequena perfeição pairam desamparadas perante a nossa razão especulativa, à qual nada custa fazer desaparecer uma e outra sem o menor entrave.

Muitas forças da natureza, que só através de certos efeitos manifestam a sua existência, continuam impenetráveis para nós, porque não podemos segui-las pela observação durante tempo suficiente. O objeto transcendental, que serve de fundamento aos fenômenos, e, a par deste, o princípio pelo qual a nossa sensibilidade está submetida a estas condições supremas e não a outras, são e continuam sendo para nós indecifráveis, embora a própria coisa seja dada, mas sem ser compreendida. Porém, um ideal da razão pura não pode considerar-se imperscrutável, porque não apresenta qualquer outra garantia da sua realidade além da necessidade que a razão tem de completar, por este meio, a unidade sintética. Se não é mesmo dado como objeto pensável, também não é, como tal, imperscrutável; antes deverá, como simples idéia, poder ter a sua sede na natureza da razão e aí encontrar solução, podendo ser, por conseguinte, perscrutado, pois que a razão consiste precisamente nisso, em podermos prestar contas de todos os nossos conceitos, opiniões e afirmações, quer seja mediante princípios objetivos, quer tratando-se de uma simples aparência, mediante princípios subjetivos.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Da impossibilidade de uma prova ontológica da existência de Deus

Immanuel Kant
Crítica da razão pura
Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão
Edição: Fundação Calouste Gulbenkian, 5. ed, Lisboa, 2001.

Só há três provas possíveis da existência de Deus para a razão especulativa

Todos os caminhos, pelos quais neste intuito se possa enveredar, partem da experiência determinada e da natureza particular do mundo dos sentidos, que ela dá a conhecer, e daí ascendem, segundo as leis da causalidade, até à causa suprema, residente fora do mundo; ou põem, empiricamente, como fundamento, apenas uma experiência indeterminada, isto é, uma existência qualquer; ou, finalmente, abstraem de toda a experiência e concluem, inteiramente a priori, a existência de uma causa suprema a partir de simples conceitos. A primeira prova é a prova físico-teológica, a segunda a cosmológica e a terceira a ontológica. Não há nem pode haver outras.

Demonstrarei que a razão nada consegue nem por uma das vias (a via empírica) nem pela outra (a via transcendental) e que em vão abre as asas para se elevar acima do mundo sensível pela simples força da especulação. Mas, no que respeita à ordem em que estas provas devem ser submetidas a exame, será precisamente a inversa da que segue a razão que se desenvolve pouco a pouco e na qual primeiro as apresentamos. Com efeito, ver-se-á que, embora a experiência forneça a primeira ocasião, é tão-só o conceito transcendental que guia a razão neste esforço e fixa em todas estas tentativas o objetivo que se propôs. Começarei, portanto, pelo exame da prova transcendental, para depois averiguar até que ponto a adição do empírico pode aumentar a sua força demonstrativa.

Da impossibilidade de uma prova ontológica da existência de Deus

Facilmente se depreende do que atrás dissemos, que o conceito de um ser absolutamente necessário é um conceito puro da razão, isto é, uma simples idéia, cuja realidade objetiva está ainda longe de ser provada pelo fato de a razão necessitar dela e que, aliás, não faz outra coisa que não seja indicar-nos uma certa perfeição inacessível, e que serve, na verdade, mais para limitar o entendimento do que para o estender a novos objetos. Depara-senos aqui algo de estranho e absurdo, que é parecer urgente e rigoroso o raciocínio que, de uma existência dada em geral, conclui uma existência absolutamente necessária, e serem contudo completamente adversas todas as condições que o entendimento exige para formar um conceito de uma tal necessidade.

Em todos os tempos se falou do ser absolutamente necessário, mas envidaram-se mais esforços para provar a sua existência do que para compreender como se poderá e até mesmo se se poderá pensar uma coisa desta espécie. Ora, é muito fácil dar uma definição nominal do que seja este conceito, dizendo que é algo cuja não-existência é impossível; mas nem por isso ficamos mais cientes das condições que tornam impossível considerar a não-existência de uma coisa como absolutamente impensável e que são, na verdade, aquilo que se pretende saber, isto é, se através desse conceito pensamos ou não em geral qualquer coisa. Porque rejeitar, mediante a palavra incondicionado, todas as condições de que o entendimento sempre carece para considerar algo como necessário, não me permite, nem de longe, ainda compreender se por este conceito de um ser incondicionalmente necessário ainda penso algo ou porventura já nada penso.

Bem mais: tem-se julgado, mediante grande porção de exemplos, explicar este conceito, ao princípio lançado temerariamente ao acaso e que, por fim, se tornou tão corrente que uma indagação ulterior acerca da sua inteligibilidade se afigurou completamente inútil. Toda a proposição da geometria, como por exemplo, que um triângulo tem três ângulos, é absolutamente necessária e assim se falava de um objeto, que está totalmente fora da esfera do nosso entendimento, como se se compreendesse perfeitamente o que se quer dizer com o seu conceito.

Todos os exemplos propostos são, sem exceção, extraídos unicamente de juízos, mas não de coisas e da sua existência. Porém, a necessidade incondicionada dos juízos não é uma necessidade absoluta das coisas. Porque a necessidade absoluta do juízo é só uma necessidade condicionada da coisa ou do predicado no juízo. A proposição acabada de citar não dizia que três ângulos são absolutamente necessários mas que, posta a condição de existir um triângulo (de ser dado), também (nele) há necessariamente três ângulos. Contudo, esta necessidade lógica demonstrou um tão grande poder de ilusão que, embora se tivesse formado o conceito a priori de uma coisa, de tal maneira que na opinião corrente a existência esteja incluída na sua compreensão, julgou-se poder concluir seguramente que, convindo a existência necessariamente ao objeto desse conceito, isto é, sob a condição de pôr esta coisa como dada (como existente), também necessariamente se põe a sua existência (pela regra da identidade), e que este ser é, portanto, ele próprio, absolutamente necessário, porque a sua existência é pensada conjuntamente num conceito arbitrariamente admitido e sob a condição de que eu ponha o seu objeto.

Se num juízo idêntico suprimo o predicado e mantenho o sujeito, resulta uma contradição e é por isso que digo que esse predicado convém necessariamente ao sujeito. Mas se suprimir o sujeito, juntamente com o predicado, não surge nenhuma contradição; porque não há mais nada com que possa haver contradição. Pôr um triângulo e suprimir os seus três ângulos é contraditório; mas anular o triângulo, juntamente com os seus três ângulos, não é contraditório. O mesmo se passa com o conceito de um ser absolutamente necessário. Se suprimis a existência, suprimis a própria coisa com todos os seus predicados; de onde poderia vir a contradição? Exteriormente, nada há com que possa haver contradição, porque a coisa não deverá ser exteriormente necessária; interiormente, nada há também, porque suprimindo a própria coisa, suprimistes, ao mesmo tempo, tudo o que é interior. Deus é Todo-poderoso, eis um juízo necessário. A onipotência não pode ser anulada, se puserdes uma divindade, ou seja, um ser infinito a cujo conceito aquele predicado é idêntico. Porém, se disserdes que Deus não é, então nem a onipotência nem qualquer dos seus predicados são dados; porque todos foram suprimidos juntamente com o sujeito e não há neste pensamento a menor contradição.

Vistes, pois, que, suprimindo o predicado de um juízo, juntamente com o sujeito, não poderá haver contradição interna, qualquer que seja o predicado. Não tendes, assim, outro remédio senão dizer que há sujeitos que não podem absolutamente ser suprimidos e que, por conseqüência, têm que subsistir, mas isto equivaleria a dizer que há sujeitos absolutamente necessários. Suposição esta cuja legitimidade me pareceu susceptível de ser posta em dúvida e cuja possibilidade me quisestes tentar mostrar. Com efeito, não posso formar o menor conceito de uma coisa que, mesmo suprimida com todos os seus predicados, ainda suscita contradição; e fora da contradição não tenho, mediante simples conceitos puros a priori, nenhum critério de impossibilidade.

Contra todos estes raciocínios gerais (a que ninguém se pode recusar) objetais-me com um caso que apresentais como prova de fato: que há, não obstante, um conceito, e na verdade só este, em que a própria não-existência é contraditória em si, isto é, não se poderia, sem contradição, suprimir o objeto e esse é o conceito do ser realíssimo. Possui ele, dizeis vós, toda a realidade e tendes o direito de admitir tal ser como possível (o que por ora consinto, embora a não-contradição do conceito esteja longe de provar a possibilidade do objeto)* . Ora, em toda a realidade está compreendida também a existência; a existência está pois contida no conceito de um possível. Por conseqüência, se esta coisa é suprimida, também se suprime a possibilidade interna da coisa, o que é contraditório.

Respondo eu: caístes em contradição ao introduzir no conceito de uma coisa, que vos propúnheis pensar apenas quanto à possibilidade, o conceito da sua existência, oculto seja sob que nome for. Se vos concedermos isto. tendes aparentemente ganho a partida, mas de fato nada dissestes, pois cometestes uma simples tautologia. Pergunto-vos: a proposição esta ou aquela coisa (que vos concedo como possível, seja qual for) existe, será uma proposição analítica ou sintética? Se é analítica, a existência da coisa nada acrescenta ao vosso pensamento dessa coisa e então, ou o pensamento dessa coisa que está em vós deveria ser a própria coisa ou supusestes uma existência como pertencente à possibilidade e concluístes, supostamente, a existência a partir da possibilidade interna, o que é uma mísera tautologia. A palavra realidade, que no conceito da coisa soa diferentemente de existência no conceito do predicado, não resolve esta questão. Porque se denominardes realidade a toda a posição (sem determinar o que se põe), já pusestes e admitistes como real, no conceito do sujeito, a própria coisa com todos os seus predicados, e no predicado só o repetis. Se, pelo contrário, reconhecerdes, como é justo que todo o ser razoável reconheça, que toda a proposição de existência é sintética, como podereis então sustentar que não se pode suprimir sem contradição o predicado da existência, se esta prerrogativa pertence especificamente à proposição analítica, cujo carácter assenta precisamente sobre ela?

Eu podia, sem dúvida, ter a esperança de refutar, sem mais rodeios, esta vã argúcia, mediante a rigorosa determinação do conceito de existência, se não tivesse descoberto que a ilusão de confundir um predicado lógico com um predicado real (isto é, com a determinação de uma coisa) quase exclui todo o esclarecimento. Tudo pode servir, indistintamente, de predicado lógico, e mesmo o sujeito pode servir a si próprio de predicado, porque a lógica abstrai de todo o conteúdo; mas a determinação é um predicado que excede o conceito do sujeito e o amplia. Não deve pois estar nele contida.

Ser não é, evidentemente, um predicado real, isto é, um conceito de algo que possa acrescentar-se ao conceito de uma coisa; é apenas a posição de uma coisa ou de certas determinações em si mesmas. No uso lógico é simplesmente a cópula de um juízo. A proposição Deus é omnipotente contém dois conceitos que têm os seus objetos: Deus e onipotência; a minúscula palavra é não é um predicado mais, mas tão-somente o que põe o predicado em relação com o sujeito. Se tomar pois o sujeito (Deus) juntamente com todos os seus predicados (entre os quais se conta também a onipotência) e disser Deus é, ou existe um Deus, não acrescento um novo predicado ao conceito de Deus, mas apenas ponho o sujeito em si mesmo, com todos os seus predicados e, ao mesmo tempo, o objeto que corresponde ao meu conceito. Ambos têm de conter, exatamente. o mesmo; e, em virtude de eu pensar o objeto desse conceito como dado em absoluto (mediante a expressão: ele é), nada se pode acrescentar ao conceito, que apenas exprime a sua possibilidade. E assim o real nada mais contém que o simplesmente possível. Cem talheres reais não contêm mais do que cem talheres possíveis. Pois que se os talheres possíveis significam o conceito e os talheres reais o objeto e a sua posição em si mesma, se este contivesse mais do que aquele, o meu conceito não exprimiria o objeto inteiro e não seria, portanto, o seu conceito adequado. Mas, para o estado das minhas posses, há mais em cem talheres reais do que no seu simples conceito (isto é na sua possibilidade). Porque, na realidade, o objeto não está meramente contido, analiticamente, no meu conceito, mas é sinteticamente acrescentado ao meu conceito (que é uma determinação do meu estado), sem que por essa existência exterior ao meu conceito os cem talheres pensados sofram o mínimo aumento.

Assim, pois, quando penso uma coisa, quaisquer que sejam e por mais numerosos que sejam os predicados pelos quais a penso (mesmo na determinação completa), em virtude de ainda acrescentar que esta coisa é, não lhe acrescento o mínimo que seja. Porquanto, se assim não fosse, não existiria o mesmo, existiria, pelo contrário, mais do que o que pensei no conceito e não poderia dizer que é propriamente o objeto do meu conceito que existe. Mesmo se pensar numa coisa toda a realidade, com exceção de uma só, pelo fato de dizer que tal coisa defeituosa existe, não lhe é acrescentada a realidade que lhe falta, mas existe precisamente tão defeituosa como quando a pensei; de outro modo, existiria uma coisa diferente da que foi pensada. Se, por conseguinte, penso um ser como realidade suprema (sem defeito), mantém-se sempre o problema de saber se existe ou não. Porque, embora nada falte ao meu conceito do conteúdo real possível de uma coisa em geral, falta ainda algo na relação com todo o meu estado de pensamento, a saber, que o conhecimento desse objeto também seja possível a posteriori. E aqui se mostra também a causa da dificuldade que reina neste ponto. Tratando-se de um objeto dos sentidos não poderia confundir a existência da coisa com o simples conceito da coisa. Porque, através do conceito só se pensa o objeto de acordo com as condições universais de um conhecimento empírico possível em geral, ao passo que, pela existência, o penso como incluso no contexto de toda a experiência; e embora o conceito do objeto não seja em nada aumentado pela ligação ao conteúdo de toda a experiência, mediante este o nosso pensamento recebe todavia a mais uma percepção possível. Se, pelo contrário, quisermos pensar a existência unicamente através da categoria pura, não admira que não possamos apresentar um critério que sirva para a distinguir da simples possibilidade.

Pode pois o nosso conceito de um objeto conter o que se queira e quanto se queira, que teremos sempre que sair fora dele para conferir existência ao objeto. Nos objetos dos sentidos isto sucede mediante o encadeamento com qualquer das minhas percepções, segundo leis empíricas; mas, nos objetos do pensamento puro, não há absolutamente nenhum meio de conhecer a sua existência, porque teria de ser totalmente conhecida a priori; porém, a nossa consciência de toda a existência (quer seja imediatamente proveniente da percepção ou de raciocínios que ligam algo à percepção) pertence inteira e totalmente à unidade da experiência e, muito embora se não possa considerar absolutamente impossível uma existência fora desse campo, é todavia uma suposição que nada tem a justificá-la.

O conceito de um ser supremo é uma idéia muito útil sob diversos aspectos; mas, precisamente porque é simplesmente uma idéia, é totalmente incapaz, por si só, de alargar o nosso conhecimento, relativamente ao que existe. Nem sequer consegue instruir-nos acerca da possibilidade de uma pluralidade de coisas. Não se lhe pode contestar o carácter analítico da possibilidade, que consiste no fato de as simples posições (realidades). não suscitarem contradição; porém, a ligação de todas as propriedades reais numa coisa é uma síntese, acerca de cuja possibilidade não podemos ajuizar a priori, porque as realidades não são dadas especificamente e, se o fossem, não se verificaria em parte alguma um juízo, porque o carácter da possibilidade de conhecimentos sintéticos tem de ser procurado sempre apenas na experiência, a que não pode pertencer o objeto de uma idéia; assim, o famoso Leibniz não realizou aquilo de que se ufanava: ter conseguido, como pretendia, conhecer a priori a possibilidade de um ser ideal tão elevado.

Por conseguinte, em vão se despendeu esforço e canseira com a célebre prova ontológica (cartesiana) da existência de um Ser supremo a partir de conceitos, e assim como um mercador não aumenta a sua fortuna se acrescentar uns zeros ao seu livro de caixa para aumentar o seu pecúlio, assim também ninguém pode enriquecer os seus conhecimentos mediante simples idéias.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

A improbabilidade de Deus

Richard Dawkins
Tradução: André Díspore Cancian
Fonte: Council for Secular Humanism

Muito do que as pessoas fazem é em nome de Deus. Irlandeses explodem uns aos outros em nome de Deus. Árabes explodem-se a si mesmos em seu nome. Imames e aiatolás oprimem mulheres em seu nome. Papas e padres celibatários interferem na vida sexual das pessoas em seu nome. Judeus shohets cortam a garganta de animais em seu nome. As conquistas históricas da religião – cruzadas sangrentas, inquisições torturantes, conquistadores genocidas, missionários destruidores de culturas e toda resistência possível contra o progresso científico – são ainda mais impressionantes. E qual é a parte positiva? Fica cada vez mais evidente que a resposta é “absolutamente nenhuma”. Não há motivos para acreditar na existência de quaisquer tipos de deuses, mas razões bastante boas para concluir que não existem e nunca existiram. Tudo foi apenas um gigantesco desperdício de tempo e vidas. Uma verdadeira piada de proporções cósmicas, se não fosse tão trágico.

Por que as pessoas acreditam em Deus? Para a maioria, a resposta ainda é alguma versão do antigo argumento do “projeto inteligente”. Nós olhamos a beleza e complexidade do mundo, a forma aerodinâmica da asa de uma andorinha, a delicadeza das flores e das borboletas que as fertilizam; através de um microscópio, vemos vida pulular numa pequena gota d'água, através de um telescópio, vemos a imensidão do universo. Nós refletimos sobre a complexidade eletrônica e sobre a própria perfeição óptica de nossos olhos. Se possuirmos um pouco de imaginação, tais coisas geram um senso de espanto e reverência. Ademais, não podemos deixar de perceber a óbvia semelhança entre nossos órgãos e os projetos cuidadosamente planejados pelos engenheiros humanos. A versão mais célebre desse argumento é a analogia com um “relojoeiro” feita pelo padre William Paley no século XVIII. Mesmo se não soubéssemos o que é um relógio, o caráter de suas engrenagens e molas e como elas se organizam com uma única finalidade nos levaria a concluir “que o relógio forçosamente teve um criador: assim, deve ter existido, em algum tempo e em algum lugar, um artífice, que o construiu com uma finalidade, que compreendeu seu funcionamento, que o projetou”. Se isso é verdade para um relógio relativamente simples, então imagine para um olho, ouvido, rim, fígado, cérebro. Essas lindas, complexas, intrincadas e obviamente pré-planejadas estruturas tiveram um projetista, tiveram seu “relojoeiro” – Deus.

Esse é um argumento que praticamente todas pessoas pensativas e sensíveis descobrem elas próprias em algum estágio de suas infâncias. Ao longo da maior parte da história ele provavelmente foi muito convincente, pois se auto-evidencia. No entanto, devido a uma das mais surpreendentes revoluções intelectuais da história, agora sabemos que é falso, ou ao menos supérfluo. Sabemos agora que o aparente “pré-planejamento” dos seres vivos deu-se através de processos inteiramente distintos, um mecanismo que prescinde de qualquer projetista e que é fruto de leis físicas muito simples: o processo da evolução das espécies através da seleção natural, descoberto por Charles Darwin e, independentemente, também por Alfred Russel Wallace.

O que todos esses objetos aparentemente projetados têm em comum? Improbabilidade estatística. Se encontrássemos um cristal transparente com o formato de uma lente rudimentar, não concluiríamos que foi projetado por um opticista: as leis da física por si mesmas são capazes de tal feito; não é muito improvável que esse cristal tenha apenas “acontecido”. Mas caso encontrássemos lentes compostas, cuidadosamente constituídas de modo a evitar aberrações esféricas e cromáticas, com proteção anti-reflexo e com as palavras “Carl Zeis” gravadas em sua lateral, saberíamos que elas não podem ser fruto do acaso. Pegando todos os átomos de tal objeto e jogando-os ao acaso sob influência das forças naturais da física, é teoricamente possível que, por pura sorte, os átomos venham a organizar-se no padrão das lentes compostas Zeiss. Mas o número de outras combinações atômicas igualmente possíveis seria tão absurdamente maior que podemos descartar totalmente a hipótese. O acaso está fora de questão como explicação.

Esse argumento não é circular. Entretanto, talvez pareça ser porque, poder-se-ia argumentar, todos os possíveis arranjos dos átomos são igualmente improváveis. Analogamente ao exemplo anterior, se uma bola de golfe cai especificamente sobre uma folha de gramínea, seria tolo dizer: “entre os bilhões de folhas sobre as quais ela poderia ter caído, acabou caindo justamente nesta. Que coincidência incrível!”. A falácia é, obviamente, que a bola obrigatoriamente precisa cair em algum lugar. Um evento desse tipo apenas seria surpreendentemente improvável se o especificássemos antes dele ocorrer: por exemplo, um homem vendado, sem referencial de direção, dá uma tacada a esmo e acerta o buraco de prima. Isso seria verdadeiramente admirável, pois a trajetória da bola foi definida a priori.

Entre todos os trilhões de modos diferentes de organizar os átomos de um telescópio, apenas uma minoria teria alguma utilidade. Apenas uma minúscula minoria possuiria as palavras “Carl Zeiss” gravadas, ou quaisquer outras palavras conhecidas pelo homem. O mesmo vale para o relógio: de todos os bilhões de possíveis combinações, apenas uma reduzidíssima quantidade mediria o tempo precisamente ou teria alguma outra utilidade. Isso se aplica, a fortiori, para nossos órgãos. Dentre todas as possíveis formas de organizar um corpo, apenas uma quantidade infinitesimal sobreviveria, lutaria por alimento e se reproduziria. Pode-se viver de muitas formas, é verdade: pelo menos dez milhões (se considerarmos o número de espécies distintas atualmente existentes). O fato é que, apesar de haver uma grande quantidade de formas através das quais podemos viver, certamente há uma quantidade esmagadoramente maior de formas através das quais não há vida alguma!

Podemos seguramente concluir que nossos corpos são demasiado complexos para terem surgido do acaso. Então como vieram a existir? A resposta é que o “acaso” entra na história, mas não apenas como um acaso simples e isolado. Em vez disso, incontáveis séries de pequenos acasos, minúsculas mudanças pequenas o suficiente para serem passíveis de ocorrência casual, foram ocorrendo uma após a outra em seqüência. Essas pequenas alterações casuais são advindas de mutações genéticas, mudanças aleatórias – erros de fato – no material genético. Elas dão origem às mudanças na forma corporal existente. Entretanto, a maioria dessas mudanças é prejudicial e acarreta a morte do indivíduo; uma minoria delas, contudo, é positiva, gerando um leve aperfeiçoamento, o que implica aumento na taxa de sobrevivência e reprodução. Através desse processo de seleção natural, as mudanças aleatórias que forem benéficas eventualmente tornar-se-ão predominantes. Agora o cenário está novamente pronto para outra mudança sutil. Após, digamos, mil dessas pequenas mudanças, cada uma servindo de base para a outra, o resultado final torna-se, pelo processo de acumulação, excessivamente complexo para surgir de uma só vez.

Por exemplo, é teoricamente possível que um olho tenha surgido do nada, num único golpe de sorte. É teoricamente possível que uma “receita” tenha sido “escrita” por uma grande quantidade de mutações gênicas. Se todas essas mutações ocorressem simultaneamente, um olho completo surgiria literalmente do nada. Apesar disso ser possível em teoria, na prática é inconcebível. A quantidade de sorte necessária é muito grande. A “receita correta” envolve uma enorme quantidade de genes concomitantemente, é uma combinação em particular entre trilhões de outras. Podemos, certamente, descartar a possibilidade de tal coincidência milagrosa. Mas é perfeitamente plausível que o olho moderno tenha surgido de algo parecido com ele, mas não igual: um olho levemente menos elaborado. Através do mesmo processo, esse “olho menos elaborado” surgiu de outro ainda menos sofisticado, e assim por diante. Admitindo uma quantidade suficiente de pequenas diferenças entre cada estágio evolucionário e seu predecessor, seria possível derivar o olho moderno do nada, simplesmente da pele. Quantos estágios intermediários podemos postular? Isso depende da quantidade de tempo disponível. Houve tempo suficiente para que os olhos evoluíssem passo a passo a partir do nada?

Os fósseis nos dizem que a vida vem evoluindo na Terra há mais de três bilhões de anos. É praticamente impossível à mente humana imaginar tal quantidade de tempo. Nós, naturalmente e felizmente, tendemos a achar que nossas vidas são bastante longas, apesar de provavelmente não vivermos nem um século. Nestes 2000 anos desde que Jesus viveu, o lapso de tempo foi grande o suficiente para obscurecer a distinção entre história e mito. Você pode imaginar uma quantidade de tempo um milhão de vezes maior? Suponha que desejássemos escrever toda a história num único pergaminho. Colocando toda a história depois de Cristo em um metro de pergaminho, quão longa seria a parte correspondente à era pré-cristã, desde o começo da evolução? A resposta seria a distância entre Milão e Moscou. Pense nas implicações disso em relação à quantidade de possíveis mudanças evolucionárias. Todas as raças de cachorros domésticos – pequineses, poodles, são bernardos e chiuauas – originaram-se dos lobos há uma quantidade de tempo que pode ser medida em centenas ou no máximo milhares de anos: não mais que dois metros na estrada entre Milão e Moscou. Pense na quantidade de diferenças entre um lobo e um pequinês, agora multiplique essa quantidade por um milhão. Vendo por esse prisma, fica fácil acreditar que o olho moderno poderia ter surgido gradualmente, passo a passo.

Continua sendo necessário, para que tal explicação seja plausível, que todos os intermediários do processo evolucionário, digamos, da pele até o olho moderno, tenham sido favorecidos pela seleção natural; haveria uma sofisticação gradual sobre seu predecessor, ou ao menos ele teria sobrevivido. Não teria muito valor provar apenas em teoria que houve uma cadeia de intermediários levemente distintos que desembocou no olho moderno, se muitos desses intermediários acabassem morrendo. Alguns argumentam que todas as partes do olho precisariam estar juntas e organizadas ou ele não funcionaria em absoluto. Meio olho, segundo esse argumento, é tão útil quanto nenhum. Não se voa com meia asa; não se ouve com meio ouvido. Assim sendo, não poderia haver uma série gradual de intermediários que resultaria no olho, asa ou ouvido modernos.

Esse argumento é tão ingênuo que apenas fico a imaginar quais são os motivos subconscientes que levam uma pessoa a defendê-lo. Meio olho, obviamente, não é inútil. Indivíduos com catarata que tiveram seus cristalinos removidos cirurgicamente não podem enxergar bem sem óculos, mas se estivessem cegos seria muito pior. Sem o cristalino é impossível focalizar uma imagem detalhadamente, mas ainda assim pode-se evitar colisões com obstáculos e também detectar a sombra de um possível predador.

O argumento de que não se pode voar com meia asa é contestado pelo grande número de animais planadores muito bem-sucedidos, incluindo muitos tipos de mamíferos, lagartos, sapos, cobras e lulas. Muitos animais que vivem em copas de árvores têm membranas entre suas juntas que realmente funcionam como semi-asas. Quando caem de uma árvore, o aumento da superfície de contado proporcionado pelas membranas pode significar a diferença entre a vida e a morte. Sejam as membranas grandes ou pequenas, sempre haverá uma altura crítica na qual elas podem salvar-lhes a vida. Assim, quando seus descendentes desenvolveram essa “superfície extra”, passou a haver um menor índice de mortes, pois sobreviviam mesmo se caíssem de alturas maiores. Desse modo, através de incontáveis mudanças quase imperceptíveis, chegamos-se às asas atuais.

Olhos e asas não “brotam” de uma só vez. Isso seria tão improvável quanto acertar a combinação de um grande cofre bancário. Mas, se formos girando o painel do cofre ao acaso, e a cada vez que acertássemos a posição, a porta se abrisse um pouco mais, rapidamente conseguiríamos destrancá-lo. É esse o “mecanismo secreto” através do qual evolução pela seleção natural alcança o que, a princípio, parecia impossível. Coisas que não podem ser plausivelmente derivadas de predecessores muito distantes podem plausivelmente ser derivadas de predecessores levemente diferentes. Se houver uma série longa o suficiente dessas mudanças sutis, uma coisa pode dar origem a qualquer outra.

A evolução, então, é teoricamente capaz de fazer o que, a princípio, parecia uma prerrogativa de Deus. Mas há evidências de que a evolução ocorreu? A resposta é sim; as evidências são esmagadoras. Milhões de fósseis são encontrados exatamente nos locais e profundidades calculadas caso a evolução tivesse ocorrido. Jamais foi encontrado um fóssil que serviu de evidência contra a teoria da evolução: a descoberta de um mamífero incrustado em rochas mais antigas que os peixes, por exemplo, seria suficiente para refutar o evolucionismo.

Os padrões de distribuição dos animais e plantas nos continentes e ilhas são exatamente os previstos caso houvessem evoluído de um ancestral comum através de um processo lento e gradual. Padrões de semelhança entre animais e plantas são exatamente os esperados caso tivessem parentesco próximo a alguns e distante a outros. O fato de o código genético ser o mesmo em todas as criaturas sugere fortemente que descendemos de um ancestral comum. As evidências da evolução são tão contundentes que o único modo de “salvar” a teoria criacionista seria argumentar que Deus, deliberadamente, plantou enormes quantidades de evidências para nos enganar, fazendo com que a evolução apenas parecesse ter acontecido. Em outras palavras, os fósseis, a distribuição geográfica dos animais e assim por diante, são apenas um grande truque. Alguém gostaria de adorar um Deus capaz de tal feito? É certamente mais sensato, além de cientificamente coerente, aceitar as evidências: todas as criaturas possuem parentesco e descendem de um ancestral remoto que viveu há mais de três bilhões de anos.

O argumento do projeto foi destruído como justificativa para a crença em Deus. Há outros argumentos? Algumas pessoas crêem em Deus devido ao que julgam ser uma “revelação interna”. Tais revelações não são sempre edificantes, mas indubitavelmente parecem reais. Muitos pacientes de manicômios crêem efetivamente que são Napoleão Bonaparte ou Deus em pessoa. Não há dúvida quanto ao poder que tais convicções exercem sobre eles, mas não existem motivos para que o resto de nós acredite nisso. Na verdade, se várias crenças se contradizem mutuamente, não podemos aceitá-las em absoluto.

Um pouco mais precisa ser dito. A evolução através da seleção natural explica muitas coisas, mas não pode ter surgido do nada. A evolução não poderia existir até que houvesse algum tipo, mesmo que rudimentar, de reprodução e hereditariedade. A hereditariedade moderna baseia-se no DNA, o qual é excessivamente complexo para ter surgido espontaneamente. Isso indica que provavelmente deve ter existido algum tipo de sistema hereditário – agora extinto – simples o suficiente para surgir do acaso e de leis químicas, que proporcionou o meio no qual a forma primitiva da seleção natural cumulativa poderia iniciar-se. O DNA foi apenas um produto de tal seleção.

Antes dessa “seleção natural primitiva”, houve um período no qual compostos químicos complexos eram formados a partir de compostos simples e, antes disso, os elementos químicos foram construídos de outros ainda mais simples; tudo muito bem explicado por leis físicas. E ainda antes disso, logo após o big-bang – que deu início ao universo –, praticamente tudo era formado por hidrogênio.

Há uma tentação para argumentar que, apesar de Deus não ser necessário para explicar como a intrincada organização do universo – que se deve fundamentalmente a leis físicas – começou, precisamos de Deus para explicar a origem de todas as coisas. Tal visão não deixa para Deus muitas funções: ele apenas daria início ao big-bang e esperaria tudo acontecer. O físico-químico Peter Atkins, em seu maravilhoso livro “A criação”, postula que o “Deus indolente” esforçou-se para fazer o mínimo de trabalho possível na criação do universo. Atkins explica como cada passo na história do universo prosseguiu, através de simples leis físicas, de seu predecessor. E assim demonstrou que a quantidade de esforço que o “criador preguiçoso” precisaria ter despendido seria, de fato, zero.

Os detalhes sobre as fases iniciais do universo concernem ao âmbito da física, e já que sou biólogo, estou mais preocupado com fases subseqüentes da complexidade evolucionária. Para mim, o importante é que, mesmo sendo necessário postular um mínimo irredutível que precisaria estar presente no começo de tudo para que as coisas se iniciassem, esse mínimo irredutível, com certeza, seria extremamente simples. Por definição, explicações fundamentadas em premissas simples são mais plausíveis e satisfatórias que teorias segundo as quais é necessário postular eventos complexos e estatisticamente improváveis, e certamente não se pode pensar em nada muito mais complexo e improvável que um Deus todo-poderoso.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

A hora e a vez do segmento padrão

Krishnamurti de Carvalho Dias (*)
Vila Velha, ES, Brasil

"...no seu sentido original atualizar sempre foi passar de potência a ato, isto é, tirar do virtual para o real, o que significa agir em lugar de apenas pensar."
Quando Rivail fez as instituições espíritas estas praticavam atos letivos, pedagógicos a saber:
· A S.P.E.E. Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, que era um espaço cultural;
· A "Revista espírita" que era "un journal d’estudes spirites"; e finalmente
· A livraria que editou os seus livros;
· Foi no Brasil, e somente aqui, que se fugiu a esse padrão laico autoral e se quis torcê-lo para uma fantasia religiosa, com instituições visivelmente místicas e piedosas.

EXÓRDIO

1 - A gente espírita contempla perplexa o quadro a que chegamos, em que não se pode mais usar para ela o clássico apelido de "a comunidade", porque o que existe é de fato uma diversidade e até uma adversidade entre os dois blocos em que se repartiu a coletividade, um com o que se pode chamar de "viés religiosista" do conjunto versus o outro que já é de um "viés" não religioso.

Também o apelido de "o movimento" pode ter perdido o seu sentido, já que a coletividade agita-se internamente em movimentos brownianos, mas não avança em termos de incluir-se na sociedade geral, onde é visivelmente uma excluída, porque incompreendida, tal a confusão que se apossou dessa sociedade geral quanto à agremiação de adeptos. Afinal não se sabe exatamente o que será esta, se a propalada "religião espírita" que pratica o prestigioso e popular "culto espírita", ou se não é.

Nem comunidade, porque dividida internamente em facções de fato inconciliáveis, nem movimento, porque paralisada no tempo e sem ocupar espaços novos na sociedade, essa coletividade que, ainda, em meio a todas essas vicissitudes, se confessa e se proclama "espírita", tenta, até aqui, em vão, se articular.

Nos confrontos ácidos, ásperos, repassados de incompreensões e até de má vontade, longe estamos daquele ideal luminoso de Leopoldo Machado...

"... somos companheiros, amigos, irmãos,
a nossa alegria é bem do evangelho,
sempre ombro a ombro, sempre lado a lado,
mesmo entre perigos, daremos as mãos
como bons amigos, como bons irmãos..."


Bezerra de Menezes advertiu, enfático:

"Solidários somos união, mas, separados uns dos outros, não passaremos de meros pontos de vista, buscando fora aquilo que já está em nossas mãos..."
O que é esse "aquilo" que já está em nossas mãos?

2 - É o penhor de nossa reconciliação, de nossa unificação, de nossa reconquista de unidade original, devolvendo-nos o perdido estado de comunidade e de movimento: a identificação do que temos efetivamente de comum e o ímpeto solidário que nos leva a objetivos realmente comuns de pleno espalhamento de nossa cultura na sociedade.

Os dois blocos desavindos têm, cada qual, um “eslogã”, um apelo, que é sua bandeira particular.

O partido religiosista obstina-se em que o espiritismo é tripartite, descrito por uma trilogia, de ciência, filosofia e religião. Já o partido não religioso (não o chamarei por enquanto de "laico" para evitar certa confusão semântica embutida nesse adjetivo) sustenta outro “eslogã” tripartite também, o de "ciência, filosofia e moral". Ambos são trinaristas, triplicistas, então, porque não há consenso? É porque, evidentemente, há uma discrepância, uma divergência no fim de cada trilogia: religião versus moral, isso impede a coincidência desse terceiro termo, logo, destrói a comunidade e estabelece a diversidade.

Todavia, a comunidade vive mesmo assim expressa naquele par ou dupla de conceitos iniciais da ciência e filosofia, este sim é um dado comum a ambos os empenhos. Não estão aí a comunidade e o consenso de que precisamos? Resta saber se ambos os lados estariam dispostos a abrir mão, (eu disse: ambos), dos respectivos terceiros termos, se o fizessem, restaria o binômio original, natural, puro, de ciência e filosofia, como uma aspiração comum presente desde já em ambos os pleitos.

Ciência e filosofia, por sinal, foi essa a tese autoral, o padrão kardequiano, o autor documentalmente jamais propôs que sua obra fosse alguma terceira outra coisa mais além dessas duas, o padrão autoral sempre foi binário, apenas bidigital portanto, jamais tripartite, nunca trinitário.

No padrão autoral o espiritismo é figura bidimensional, sem triplicação nenhuma. Esta adveio foi da incapacidade dos adeptos de resistirem a uma verdadeira armadilha cultural, um engrama coletivo remotíssimo adquirido desde a fase dos pitecos, quando o homem tangido não sei por quais condicionantes evolutivas, fixou-se no três mito-mágico, místico-sagrado, como o numeral perfeito, cristalizando aí importantes quantificações.

É o trimurti bramânico de Brama-Shiwa-Vixnu, é ou são as famosas "tríades bárdicas" do celtismo-druidismo (que Rivail estremecia, mas pôs de lado, talvez para fugir ao engrama fatídico trinário), é o triunvirato romano; são as troicas da religiosidade egípcia, as trilogias políticas da franco-maçonaria, finalmente a maior trilogia da história leiga, a famosa e incendiária "liberté, fraternité, egalité" da Grande Revolução.

É a fraude histórica da "santíssima trindade", do símbolo de Nicéia, passando pelos três poderes de Montesquieu, este que retomou o rascunho dos Estados Gerais.

Enfim Zé-povo quando quer enumerar, não consegue passar do "Fulano, Sicrano, Beltrano", "do assado, frito e cozido", do isto, do aquilo, e mais outro, até o limite triplo irremovível nas cabeças como na retranca e o ferrolho das três dimensões espaciais, que Euclides fechou e só agora as simetrias de calibre, nas físicas de gauge, conseguiram, fora das vistas da humanidade, deles se evadir, puxando para um espaço-tempo decadimensional novo, em lugar do antigo espaço euclidiano só tridimensional. Engrama é isso: a fixação em algo que sobreleva a razão[1].

A mais importante abertura, derrubando o férreo circulo trinitário desse engrama ancianíssimo, foi sem dúvida a contribuição genial de Leibniz, rasgando à civilização a linguagem bidigital, donde saíram os tititis binários da internet, a alacridade a dois bits dos satélites e sondas espaciais, o bip-bip dos computadores, o chilrear alegre da cibernética, da informática, robótica e da eletrônica.

Era o fim da Era trinitária-tríplice em termos de unidades de significação. E Rivail estava com Leibniz. Seu padrão autoral é binário puro, só dois bits, os da ciência e filosofia, nada mais. O espírito está ou encarnado, se residente na biosfera e pois membro da biodiversidade; ou então permanece desentranhado na erraticidade, como desencarnado. Ao mesmo tempo, operava a maior redução conceitual, ao matar a idéia de morte, vista esta como um não-ser extinguindo a vida, proclamando em lugar desse dualismo falso, o monismo de vida só, sempre vida, com mais vida após a vida, passada esta em diferentes espaçotempos alternativos, no mundo corporal e/ou no dos espíritos, no que bem se pode chamar de "vida" e contravida, como fases alternas em que se decompõem binariamente a "hipervida" geral dos espíritos, seu existir perene, ininterrupto, incessante, contrapostas entre si, ora de internação na biosfera e na biodiversidade ou então de erraticidade, mas sempre vida só, sem morte no meio ou no fim.

Nenhuma triplicidade aí, só dualismo, discurso binário, bidigital, esse o caráter puramente dual do espiritismo, que não tem sido contemplado quando exposto a indevidas triplicações, onde qualquer terceiro termo soa falso, inautêntico, como uma coisa postiça.

Rivail abandonou o engrama, ancestralíssimo, do três fatídico, abraçando o binário, o bidigital revolucionário leibniziano, talvez por sua formação germanófona, pois além de tudo, "mais parecia um alemão", sublinha sua melhor biografa e tradutora, Anne Blackwell, isso até fisicamente, que dirá mentalmente.

Sua frase em que proclamou a supremacia da razão sobre a fé (em “O Evangelho segundo espiritismo”) é toda de Leibniz que já a dissera antes com outra redação[2], Rivail apenas a repropôs, mutatis mutandi. Ao optar pelo modelo leibniziano, Rivail apontou o padrão de sua obra, que é o de um binômio, com o qual seguia os ventos racionais e então ainda muito futuros da modernidade apenas amanhecida, deixando as soturnas virações antigas de trimurtis, trindades, tríades e triplicidades mito-mágicas de antanho.

Ciência e filosofia perfazem cognição, a qual é cultura, no sentido de posse de erudição, dos refinos e picos de saber, de ilustração. Todavia, cultura, após o decesso de Rivail (isso já por volta de 1881, por aí) adquiriu um contra-sentido diferente, já passou a ser também qualquer conjunto de hábitos, de idiossincrasias, praxes ou mores que um povo, mesmo inculto, analfabeto, até selvagem e primitivo, sempre tem. As culturas ágrafas, não escritas, são as culturas desses primitivos, o que decerto não se confunde com a cultura naquele primeiro sentido que antes examinávamos, o sinônimo de ilustração, de posse de ciência e filosofia, arte, tecnologia, em graus elevados e desenvolvidos dos povos cultos, civilizados.

Se dissermos qualquer terceira coisa extra além daquele binômio rivailiano, se triplicarmos o padrão autoral no que quer que seja, estaremos complicando e criando dificuldades de compreensão.

Deolindo Amorim, para contrapor ao discurso religiosista da FEB, uma afirmação laica marcante de sua própria posição, fabricou a expressão de "cultura espirita" (no seu ICEB), estabelecendo o contraditório. Era "o culto espírita" de Chesnel versus a cultura espirita de Rivail, isto é, a cognição, marca inseparável da codificação. Mas já a agremiação, a coletividade dos adeptos (que também levam o mesmo nome que a codificação, de "o espiritismo") em seus naturais estos de admiração e vivenciamento do que qualquer um bem entendia como sendo essa "cultura espírita", já demonstrava bem o perigo de se fixar essa expressão de Deolindo como um dado absoluto.

Se havia uma "cultura espírita", então corria-se o risco de assumir como espiritismo, (ou seja como a cognição erudita espírita) o acervo de hábitos, isto é, de mores, o estoque moral portanto, dos adeptos, toda a espantosa babel que as pessoas, egressas das religiões, dos sincretismos, do materialismo, das formas esotéricas, vinham trazendo cá para dentro da coletividade, como sua bagagem natural, no atavismo, nas idiossincrasias dessa gente, que constituía sem dúvida a sua cultura pessoal, e se essa era a cultura "dos espíritas" então era essa "a cultura espírita como um todo" na visão dos antropólogos, sociólogos, da mídia, dos governos, então tome confusão entre o candomblé, a quimbanda, a umbanda, a santeria, o roustainguismo, o trincadismo, "el cordon", o afro-indigenismo dos recém chegados, tudo confundido com a codificação, numa confusão conceitual que não pode ser chamada lisamente mais de "a cultura espírita".

3 - É que há dois conceitos de cultura, como os há também de religião, e finalmente, também de espiritismo, moral, de laicismo. Essas palavras têm manifestamente, duplo (e até maior número de) sentido cada qual, não podem ser manejadas com desjeito, com descuidado, para descrever e designar a obra apenas científica e filosófica de Rivail, esta que não recepciona nenhuma triplicidade conceitual, não é descritível por nenhuma triplicidade conceitual, nenhuma triplicação.

Rivail nunca assumiu nada mais do que isso: os fatos, apenas os fatos, devidamente estudados, formaram a ciência espírita, da qual decorreu uma filosofia espiritualista, ponto final dessa gênese epistemológica. Tudo mais que daí por diante houvesse, ficou externo, exterior, a esse binômio, como parte das coisas que estão "do lado de fora" desse fechado âmbito interior do padrão autoral de só ciência e filosofia. Por isso a frase padrão kardequiana de definição de sua obra foi muito clara: "o espiritismo é uma ciência e uma filosofia, que têm conseqüências morais", isto é, que afetam os mores, as praxes, os hábitos, a cultura, pois, da sociedade onde transita. E o binômio autoral faz isso. Se não pensarmos assim, não entenderemos a obra de Rivail. O espiritismo só é a codificação, na definição-padrão autoral: ciência e filosofia, cognição codificada, isto é, passada de um estado original para outro, o que dá a Rivail o legítimo direito de ostentar o apelido de "o codificador", sem incidir, momento algum, na pecha de autor religioso de algum novo culto, tão pouco de legislador moralista.

Ele foi apenas o agente que tirou a cognição sobre as coisas do espírito, do estado primitivo de elucubrações soturnas, trazendo-a para o modo aberto, transparente, de saber racional. Onde o que se aprende incorpora-se à mente e passa a transformar os mores, os hábitos de pensar, dizer, fazer, mas todo mundo inventa, fantasia, que tal transformação moral seria só em termos últimos, dramáticos de sublimidade espiritual e santidade.

Qualquer aprendizado e cultura, no sentido crasso de cognição opera tal mudança. Para Rivail, "reconhece-se o verdadeiro espírita por sua transformação moral", porque o seu conjunto de hábitos, seus mores (mos, moris, em latim era "hábitos", aquilo que se faz vulgarmente), passa a refletir a admissão dos novos conhecimentos espiriticos, sem nenhuma mudança dramática de personalidade.

4 - O que se chamava de moral, não passa de um adjetivo, um sinônimo corriqueiro de habitual, cultural, psicossocial, usual, costumeiro, isso é indisputável. Foi só na tendência a complicar, de modo pedante e sob a influência do sombrio religiosismo, que o dado moral, ou seja, as constâncias de procedimento, se tornaram pasto do moralismo, do maniqueísmo, o macartismo, do fiscalismo, território de catões, comadres e candinhas, pudicões e cérberos patrulhadores da vida alheia.

A palavra moral hoje é um caso perdido de polissemia, tal como religião, cultura, laicismo e até "espiritismo" também.

Se dizemos "religião", estamos falando do culto ou do laço. Se ferimos moral, ou é o trio de adjetivos (moral, imoral, amoral) ou é o substantivo, é o código de feras disposições mandatórias, é o conjunto de regras aceitas por um grupo. Se dizemos "espiritismo" ou é a codificação ou então é a agremiação.

Para evitar confusões, Rivail avisadamente pediu que ninguém chamasse sua obra por esses apelidamentos.

5 - Também foi enfático, declaratório, rasgado, em dizer que não havia trazido (nem os espíritos com ele), "nenhuma moral nova", isto é, nenhum código moralista, próprio, seu, inédito, como um Zenão, um Epicuro, um Confúcio, mas tinha, sim, ido buscar a moral de outrem, preexistente, a do Cristo (não a decantada "moral cristã" que não é do Cristo e sim dos papados e concílios) e que essa moral crística é que perfumava a codificação, não como alguma terceira parte dela, porém, como um elemento daqueles admitidos dados adicionais, externos, as conseqüências morais que estão do lado de fora do âmbito formal da codificação.

Moral, adjetivamente, o espiritismo sempre é, porque não é malsão, deletério, logo não é imoral nem amoral. Esse é o significado adjetivo da palavra, descritiva ou indicativa da área onde se dão as conseqüências do ensino e aprendizado espírita, que é o território dos mores populares.

O espiritismo é cultura num sentido mas já não é mais no outro da mesma palavra. Cultura no sentido de erudição clássica, formal, isso ele é; já no de qualquer conjunto de hábitos de gente, com gostinhos, palpites, fantasias; substantivamente porem, já é a decantada "moral espírita" pois realmente isso ele não é, visto Rivail não ter produzido tal código.

Porque é um laço, não um culto, não se pode nem se deve chamá-lo de religião. Porque é moral, só adjetivamente, no sentido de influir nos mores, transformando-os, então não se segue que ele seja substantivamente uma moral, um código rigorista, a diferença é essa.

6 - Já quando se diz que ele é laico, com isso afirmamos que não é religioso, então fatalmente só é um caso de... laicismo, mas o laicismo politicamente é a separação entre igreja e estado. Já por outra, laicismo é a convivência normal entre fés e credos religiosos, sem prevalência de nenhum. Complica que laicismo tornou-se também uma dessas doutrinas de estado contra cultos religiosos como no México, na Espanha republicana, em Portugal pós-monarquia, na Rússia comunista, na França de 89, e até no Brasil republicano. Não é pois palavra prestável para definir nossa posição. Não deve, pois, ser usada.

7 - Se Kardec se exorna com o luminoso título de "codificador" isso é exatíssimo. Romanos tinham ou rolos ou códigos a certa altura, quando se passava de um para outro dos formatos, isso era o codificare, era a codificationem, obra do codificator, o escravo letrado, culto, que fazia essa transposição. Passar de rolo a código, é a alma do que se chama de codificação, por isso Rivail recebeu esse cognome. Quem faz essa proeza, é um codificador, sem que tenha de ser visto como legislador moralista, jurídico ou iluminado de algum culto recém-inventado. Morse fez um código, tirando sentido e dando um fim novo ao bip-bip do telégrafo elétrico, esse código é tecnológico, não moralista. O mesmo com Louis Braille, permitindo aos cegos "lerem" com a ponta do dedos. Watson e Crick são autores do código genético, outro que não é moralista em nada.

8 - Estamos todos usando palavras más pelos seus sentidos múltiplos, que quando moduladas, confundem e abrem chance para espertas manobras de interessados em impor seus pontos de vista pessoais. É o caso de "doutrina", que para muitos é perfeita para descrever o espiritismo. Só que não é. A obra de Rivail não é mais uma doutrina e sim uma entidade mais completa, é um continuum de ciência e filosofia. Mas doutrina virou nome de produtos ideológicos terríveis como o nazismo, o fascismo, o comunismo, o sadismo, o anarquismo, o terrorismo, o racismo, o sexismo, as piores distorções humanas.

Chamado de doutrina tão desenvoltamente pelos espíritas, que idéia faz a sociedade sobre a nossa cultura, quando a vê sentada no banco de réus da história ao lado de tão sombrios colegas? Não podemos mais continuar apelidando assim ao produto rivailiano.

9 - Quando Rivail tomou do termo "espiritismo" foi para tirá-lo da função inglória de nome de mera crença popular antiga em motores invisíveis e projetá-lo como a coisa nova cultural que ele ora havia produzido, a matéria dupla, binária de cognição, isso é codificar. Todavia quando essa cognição bate na sociedade, desperta nesta ecos, repercussões e o povo divide-se a respeito. Uma parte fecha com o novo ismo e sustenta-o, religionando-se numa agremiação laica no puro sentido filosófico da palavra. Outra parte extrapola, fecha com a religiosidade e o misticismo mas ao fazê-lo sai do sentido profundo original laico da codificação.

10 - Acontece que a codificação não tem passado, mas a agremiação sim. A codificação são só dados na maioria técnicos, já a agremiação são pessoas vivas, com gostinhos, humores, caprichos e radicalizações, pontos de vista opiniáticos, emoções, e pesados atavismos imemoriais adquiridos nos trâmites evolutivos.

Agremiação então é um feixe de segmentos de gosto, opinião preferência, que se formam livremente. É um tecido demográfico, conforme a vida pregressa desses membros vivos, que são gente, pessoas.

11 - Enquanto vivermos chamando por um nome só e mesmo a coisas diferentes e até contraditórias, não sairemos do impasse da perda de consenso. Temos de redefinir nossa linguagem.

A agremiação deveria ser a comunidade, porém não é. É a diversidade, pelos seus desencontros e desacertos em manejar linguagens contraditórias. Deveria ser o movimento, o que também não é, pois não vai para parte alguma, move-se só dentro e de si mesma.

12 - Abandonar o passado, eis a palavra de ordem, só por isso, o pomo de discórdias das trilogias, das palavras de duplo sentido ficará desativado.

13 - É que as pessoas ou estão ainda movendo-se no clima pesado dos dependenciamentos religiosos, isto é, desfrutam de sua liberdade "de religião" (o direito de cada qual ter uma, a sua, a que escolheu e que satisfaz, por enquanto ao seu ego) ou então já se libertou de tal dependenciamento e desfruta já do oposto, da liberdade "da religião" tendo se emancipado desse dependenciamento.

14 - Mas uma coisa é pensar em conformidade, em consonância com o padrão autoral da codificação e bem outra é inventar, fantasiar e discrepar dele. Rivail previa isso e pediu exatamente esse respeito mútuo, onde "ninguém deve constranger a consciência de ninguém". Se um se acha o certo, todos virão a "pensar como ele", mas se ele estiver errado, "acabará por pensar como os demais". Esse é o padrão kardequiano.

Dentro da agremiação reina a divisão em segmentos, uns assim e outros assado, ao sabor das idiossincrasias individuais. Mas dentro do espiritismo enquanto codificação, no significado legítimo, original, autoral, está o padrão. Por vezes a agremiação abandona o padrão, esquece a codificação e projeta-se em largos desvios para fora desta. Mas há um segmento que não faz isso, que busca o padrão e observa-o, mantendo-se dentro de seus limites, sem os extrapolar. É o que chamo de "o segmento padrão da agremiação", porque conserva-se nos limites da codificação.

15 - O importante é que todos no fundo pensamos o espiritismo do mesmo modo padrão desejado por seu autor, pois eventuais acréscimos, adições, não passam de conseqüências morais, isto é, o fruto de traços externos, exteriores ao âmbito da codificação, encontráveis apenas na agremiação e em seus mores.

Apelo serenamente para o futuro: o programa agora é racionalizar, entender que o padrão autoral rivailiano é de fato apenas dual, não comportando nenhuma triplicação, posto que, já para fins de normativa para a agremiação, Rivail tivesse sido é tríplice na sua luminosa trilogia de "trabalho, solidariedade e tolerância", mas essas são duas coisas diferentes, que podem conviver e interagir, sem conflitar.

De coração desejo isso: que nos entendamos. Que nos procuremos, solidários, solícitos uns com os outros, embora as por vezes abissais diferenças que milênios de religiosismo e religiosidade, para uns, mas já apenas algumas décadas, só, até, de desconfessionalização e dessacralização para outros, terminaram por aprofundar, traçando um Canyon, uma calha, entre os dois contingentes.

PALAVRAS FINAIS

Total, absoluta é minha solidariedade com o pólo gaúcho e o santista do segmento padrão, bem como a minha identificação com luminosa CEPA, cuja volta ao Brasil tive a felicidade de presenciar. Ofereço essas palavras como uma reflexão muito cordial e fraterna ao consenso dos meus amados confrades.

NOTAS

[1] Quem define engrama é Henri Laborit, in "Deus não joga dados"; Editora Trajetória Cultural; 1º Edição - página nº: 66, Engrama: do grego en (em) e grama (caráter, traço) significa, em psicologia, "marca deixada no cérebro por um acontecimento do passado individual ".

[2] A citação da frase de Leibniz sobre "Fé raciocinada", que Rivail com outra redação reproduziu, está no livro "Bases científicas do espiritismo" - Epes Sargent, edição da FEB; Página nº.175:

"Nenhuma fé, diz Leibniz, pode ser real ou inteligível, se não tiver a sua base na razão humana. A religião divorciada da razão do homem não pode firmar-se e sustentar-se."
(*) Bancário aposentado, expositor, articulista, autor dos projetos CINESP, TEVESP e DATESP, com utilização das mídias, cinema, Super 8, TV VHS e os primeiros Home Computers; autor de diversos livros espíritas, entre os quais “O laço e o culto”, “O nascimento da morte”, “Toques de obsessão”, “A descoberta do espírito”, “Roustaing” e “2 Ensaios”. Desencarnou em Vitória-ES, no dia 02.01.2001, semanas após sua participação no Congresso da CEPA.

XX Congresso Espírita Pan-Americano

Texto extraído da CEPA - Confederação Espírita Pan-Americanahttp://www.cepanet.org/

Porto Rico os espera!

Unam-se a nós no XX Congresso da Confederação Espírita Pan-Americana a realizar-se no período de 4 a 8 de junho de 2008, em Porto Rico. A Comissão Organizadora tem tudo preparado para este magno evento e espera com alegria sua participação. Centenas de espíritas da América, Europa, Caribe e Oceania se encontrarão para compartilhar experiências, conhecimentos e calor humano, sob o sol e a brisa quente da bela ilha. A seguir lhes damos as informações mais relevantes da atividade:

Local:
As reuniões serão no Hotel Holiday Inn de San Juan, Porto Rico. Necessitarão quatro noites para desfrutar plenamente do evento. O custo da diária é U$130 (dólares americanos) para duas pessoas (mais impostos). Admite-se duas pessoas adicionais no mesmo quarto, com acréscimo de U$25 na diária por pessoa (mais impostos). Para fazer reservas pode ligar para o telefone (787) 253-9000 ou via internet no endereço
www.holidayinn.com.

Custo da inscrição:
Será oferecido coquetel e espetáculo artístico de voas vindas na cerimônia de abertura, todos os desjejuns, almoços e dois coffee-breaks de quinta a sábado, todos os materiais (pasta, papel, caneta etc.), dezenas de conferências com conferencistas internacionais e um jantar dançante na noite de sábado, pelo valor de U$200 (dólares americanos) por pessoa.

Fórum de Temas Livres – todos podem participar:
Como de praxe nos Congressos da CEPA, em Porto Rico também serão abertos espaços inteiramente livres à disposição de espíritas de qualquer parte do mundo. Um grupo de trabalho foi designado pelo Conselho Executivo para analisar previamente os pedidos de apresentação de temas livres. O grupo será coordenado por Juan Albino (Porto Rico) e integrado por Gustavo Molfino (Argentina), Maurice Herbert Jones (Brasil), Raúl Drubich (Argentina) e Ademar Arthur Chioro dos Reis (Brasil). Leia e/ou copie o Regulamento do Fórum de Temas Livres diretamente desta página que encontra-se juntamente com os livros publicados.

Para mais informações, acesse a página
http://www.conocenos.org/CEPA2008/

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Reunião de desobsessão

uma abordagem kardecista

1 INTRODUÇÃO

Há uma recomendação difundida no movimento espírita brasileiro para que não se permita a presença de assistidos em reuniões de desobsessão realizadas nas casas espíritas. E o que se observa é que essa sugestão é, amiúde, fundamentada nalgumas obras psicografadas, principalmente em livros do espírito André Luiz, através das mediunidades de Francisco Xavier e de Waldo Vieira, e nalgumas psicografias do médium Divaldo Franco. A própria Federação Espírita Brasileira (FEB), em seus textos e manuais, também recomenda essa diretriz para tais reuniões.

Alguns exemplos dessa recomendação são também encontrados em livros como os do Projeto Manoel Philomeno de Miranda, que afirma, numa dessas obras, ser a privacidade –não apenas entendida como o caráter não público dos encontros mediúnicos, mas de qualquer presença estranha ao corpo de trabalhadores da casa– uma “condição normativa” e “princípio norteador” (Pugliese e outros, 2001, p.95), pois tais reuniões “não têm platéia, nem doentes interessados em curar-se, nem curiosos” (p.96). Num outro livro desse mesmo projeto, insiste-se: “Não há necessidade de franquear as reuniões aos apelantes do socorro desobsessivo” (Projeto..., 2000, p.140).

Entretanto, à revelia da disseminação dessa orientação prática às reuniões de desobsessão, a leitura cuidadosa das obras kardecistas aponta para um caminho oposto ao indicado pelo movimento espírita brasileiro. Entende-se que a presença do obsidiado não lhe traz inconvenientes e nem à reunião em questão, ao contrário, ela é benéfica ao seu melhoramento e deve ser incentivada pelas casas espíritas que buscam fundamentar suas práticas nos ensinamentos de Kardec. O que não invalida, e isso deve estar desde já bem explícito, o trabalho de assistência à distância, também citado nos textos e obras de Kardec como importante instrumento de auxílio.

Justifica-se esse estudo pela tentativa de esclarecer aqueles que, porventura, fazem suas reuniões com a presença de assistidos e sentem-se constrangidos diante dessa diretriz, como se descobrissem “erros” nas suas práticas mediúnicas, apesar do estudo contínuo e aprofundado e do bem que conseguem levar a tantas pessoas que procuram os recursos da desobsessão oferecidos em suas casas espíritas.

Para embasar a opinião sobre o tema, utiliza-se, sem parcimônia, a obra kardecista, que traz em vários pontos exemplos e discussões sobre a teoria e a prática das obsessões e desobsessões. Há referências óbvias em O livro dos espíritos, principalmente no capítulo 9 da parte 2, em O livro dos médiuns, espalhadas aqui e acolá, mas principalmente no capítulo 23 da parte 2, em A gênese, principalmente nos capítulos 14 e 15, além de inúmeros artigos espalhados pelos 12 anos da Revista espírita, editada por Kardec. Utiliza-se também, para servir de guia e modelo, das descrições dos Evangelhos que relatam as atividades de cura de Jesus durante sua experiência na Terra.

2 ARGUMENTOS DE INTERDIÇÃO

Primeiramente, cabe rever alguns dos argumentos mais utilizados para defender a ausência dos assistidos nas reuniões de desobsessão. Classificam-se em três principais: as opiniões dalguns espíritos sobre o assunto, principalmente aqueles que se utilizam de médiuns renomados; a posição da FEB, defendida através dum opúsculo intitulado Orientação ao centro espírita; e, por último, algumas citações de obras kardecistas, utilizadas descontextualizadamente.

Dos três argumentos, o mais comumente usado pelos defensores da interdição são as opiniões de espíritos sobre tal procedimento, trazidas através dalgumas obras psicografadas, todas contrárias à presença dos assistidos nas reuniões de atendimento mediúnico. Uma das obras mais citadas é a Desobsessão, ditada pelo espírito André Luiz aos médiuns Francisco Xavier e Waldo Vieira, que se propõe a ser uma orientação “à constituição e sustentação dos grupos espíritas devotados à obra libertadora e curativa da desobsessão” (Xavier, Vieira, 2004, p.18). Nessa obra, que chega a tratar da organização física do espaço utilizado pela reunião, indicando até onde devem situar-se cadeiras e bancos ou o que devem comer ou não os seus partícipes, há a orientação clara do impedimento do acesso à reunião dos que a ela chegam necessitados de auxílio, estando a esses reservados os procedimentos inicias como orientação fraterna e passes, impedindo-se a entrada posterior nas tarefas propriamente mediúnicas (p.95). Somente em casos excepcionais, de gravidade confirmada, é que o autor considera a possibilidade de acolhimento do assistido no interior da reunião como “assistência precisa” à sua enfermidade (p.96).

Já na obra Conduta espírita –psicografada pelo médium Waldo Vieira–, André Luiz é direto na sua afirmação: “abster-se da realização de sessões públicas para assistência a desencarnados sofredores” (Vieira, 1986, p.90). Tal assertiva é muito usada em textos e artigos correntes para fundamentar o impedimento da presença do obsidiado nas reuniões. Entretanto, aqui se tem um grave problema de compreensão: o que se argumenta é a participação do atendido no transcorrer da própria reunião, jamais uma reunião que seja aberta ao público. E pelas citações das obras referidas do autor espiritual, o que ele claramente coloca é a interdição da publicidade da reunião, e não a interdição absoluta da presença do atendido em seus procedimentos, apesar das ressalvas que faz para tal presença.

E é interessante comentar que vários autores, tal como acima se vê, referem-se à interdição da publicidade da reunião, com o quê aqui se concorda, sem entretanto tratar especificamente da presença de obsidiados, como se lê em Obsessão/desobsessão, de Suely Schubert, ao sugerir que trabalhos mediúnicos “jamais devem ser abertos ao público” (1985, p.130); também em Mediunidade, de Richard Simonetti: “as reuniões mediúnicas devem ser privativas” (2003, p.59); ou ainda em Mediunidade, de Edgard Armond: “A assistência deve ser afastada dos ambientes de trabalho” (1999, p.203). É importante insistir em destacar que o que se propõe não é uma reunião aberta ao público, mas uma reunião de caráter estritamente privado, com a presença de assistidos, jamais espectadores.

São também usados como argumentos contrários à presença do assistido nas reuniões de desobsessão algumas obras do médium Divaldo Franco. Por exemplo, no livro do espírito João Cleofas, Suave luz nas sombras, o autor espiritual enumera alguns requisitos para a boa consecução de uma reunião, a saber: a afinidade entre participantes; a lealdade de propósitos; o comportamento no bem; a sinceridade entre os membros; o desinteresse pela frivolidade; e a vigilância na atividade (Franco, 1994, p.108-109). Opinar, como se lê em alguns artigos constantes em periódicos espíritas, que esses requisitos seriam incompatíveis com a presença do assistido é ilação desprovida de fundamento prático e racional, pois o que trata o autor espiritual é quanto à qualidade das reuniões mediúnicas, e não sobre a presença ou não de assistidos, que, como se verá, em nada desqualifica uma reunião.

Outro exemplo é a opinião do espírito Vianna de Carvalho, retirada do livro Atualidade do pensamento espírita, psicografado também pelo médium Divaldo Franco, que assevera: “Incontestavelmente, para que se realize o tratamento das obsessões, não se torna condição essencial a presença do paciente. Essa deve ser evitada, em razão do seu próprio estado de desequilíbrio psíquico e emocional” (Franco, 1988, p.172). Aqui o que se lê é uma argumentação comum: a de que a presença do enfermo poderia causar ainda mais problemas a ele devido ao seu estado de fragilidade psíquica e emocional. Isso não é real, pois os benefícios resultantes de tal prática são excepcionalmente maiores do que aqueles sem a sua presença. Seria como questionar se o tratamento médico se faz melhor sem a presença do paciente ou com a sua presença, mesmo que ele se sinta, por vezes, constrangido com alguns aspectos do tratamento.

Já o espírito Bezerra de Menezes, na obra Nas fronteiras da loucura, assinada pelo espírito Manoel Philomeno de Miranda e ditada ao médium Divaldo Franco, opina “que a presença dos que se candidatam aos benefícios não é indispensável”, e, de forma ainda mais veemente, insiste: “é o despreparo de quem se arroga as condições de dirigente de sessões que responde pela incompetência” (Franco, 1982, p.120), falando daqueles dirigentes que levam seus assistidos às reuniões de desobsessão.

É certo que esses espíritos acima mencionados têm uma credibilidade acima de qualquer questionamento, mas não invalida o fato de serem espíritos imperfeitos como todos nós, que trazem suas opiniões e idéias mitigadas pelas experiências individuais, e limitadas ao seu nível de conhecimento e evolução espiritual. Portanto podem, e devem, ser tratados como pessoas, iguais a todos, com seus preconceitos e imperfeições, apenas despojados de seu invólucro carnal. Não é porque emitiram suas opiniões que se deve, a partir de então, segui-las, como se fossem revelações de novas verdades plenas, transcendentais. Justo por considerá-los como todos os espíritos envolvidos de forma direta com o labor terreno, não se deve vê-los como mentores, nem os adjetivar de veneráveis, superiores ou outros qualificativos idólatras, como sói acontecer no místico movimento espírita brasileiro. O respeito por eles é demonstrado através da análise rigorosa de seus conteúdos, lição inesquecível dos espíritos que participaram das obras kardecistas. Posto isso, cabe agora comparar suas opiniões com o que se encontra nos textos básicos do espiritismo, e percebe-se, então, não haver fundamento nessa restrição prática da atividade mediúnica, o que ficará explicitado mais adiante nesse texto.

O segundo argumento utilizado para justificar a opinião contrária à presença dos obsidiados nas sessões de atendimento mediúnico é uma recomendação da Federação Espírita Brasileira (FEB), aprovada pelo Conselho Federativo Nacional, firmada através de obra já citada, que se propõe a normalizar o funcionamento das casas espíritas, conforme o texto original. Nessa obra, a FEB argumenta a participação “de muitos estudiosos e dedicados obreiros” (FEB, 1985, p.11) para transformar suas opiniões em “princípios e normas básicas” (FEB, 1985, p.11), interpretando as orientações dadas pelo espírito André Luiz, na obra Desobsessão, na qual afirma a necessidade desse tipo de reunião: “Com base nessa afirmativa do espírito André Luiz, no intróito da obra Desobsessão, [...] e nas instruções dadas por ele neste livro para a realização das reuniões privativas (sem público) destinadas à desobsessão, elas deverão ser assim processadas” (FEB, 1985, p.34)[1], e aí se seguem as normas estabelecidas, definindo etapas e informando até mesmo os minutos a serem gastos em cada uma delas.

Acredita-se dever ser avaliada por todos os espíritas a criação de “princípios e normas básicas” a partir da opinião dum único espírito, e ainda mais, se cabe ao espírito essa tarefa ou aos encarnados. E mais grave, se se é possível falar em normalização dentro do meio espírita, mesmo que se queira argumentar a unificação. Outra avaliação que se faz quanto a essa argumentação é o esquecimento que a FEB, e todas as federações e uniões estaduais e municipais, são um conjunto de homens e mulheres envolvidos com idéias e propostas bem definidas, e que, portanto, nunca serão a representação plena de todo o movimento espírita, espalhado numa plêiade incontável de casas espíritas pelo Brasil. Por conta dessa reunião de pessoas em torno da FEB, é que se pode compreender algumas opiniões por ela emitidas, como as do Reformador, seu órgão de divulgação doutrinária, em julho de 1953, que afirma que “todo aquele que crê nas manifestações dos espíritos é espírita; ora, o umbandista nelas crê, logo o umbandista é espírita”, e vai além dizendo que “os que aceitam o fenômeno espírita como manifestação de ‘Satanás’, ou como ocasionado somente por forças desconhecidas, esses não são espíritas; mas aqueles que o têm como produzidos por espíritos, esses devem ser considerados como adeptos do espiritismo, isto é, espiritistas, admitam ou não a reencarnação e pratiquem ou não rituais que nós não adotamos” (FEB, 1953). É fato, e não se poderia esquecer, que a FEB se retratou no próprio Reformador de setembro de 1977, através de um editorial afirmando que a “Doutrina espírita é o conjunto de princípios básicos, codificados por Allan Kardec, que constituem o espiritismo. Estes princípios estão contidos nas obras fundamentais, que são: O livro dos espíritos, O livro dos médiuns, O evangelho segundo o espiritismo, O céu e o inferno e A gênese” (FEB, 1977). Essas citações são apenas para que não se esqueça os limites de atuação da FEB enquanto um dos órgãos de aglutinação do movimento espírita, mas nunca a representante do espiritismo, pois sempre estará sujeita às opiniões de pessoas da sua direção, e que podem ir de encontro aos princípios fundamentais do espiritismo, como a defesa longa e quase ingênua das obras de Roustaing, que se fazem constar inclusive em seus estatutos.

O terceiro, e último, dos principais argumentos trazidos pelos textos e artigos que buscam defender a idéia da interdição é mais profundo e requer uma análise mais acurada. Trata-se de citações de obras kardecistas com o propósito de fundamentar a recomendação da ausência do assistido nas reuniões mediúnicas. Se essa foi uma recomendação explícita de Kardec em suas obras, não há porque não acolher tal recomendação. Os fragmentos citados são geralmente os seguintes: 1) em O livro dos médiuns, no capítulo 29 da parte 2, itens 331 e 332, capítulo que trata das reuniões e sociedades espíritas (Kardec, 1996, p.427-428). Nesses fragmentos, Kardec versa sobre as condições ideais para que se tenha uma boa reunião espírita, falando da necessária homogeneidade de pensamentos e da dificuldade de encontrá-la em reuniões muito numerosas; e 2) na Revista espírita, de fevereiro de 1866, que descreve os procedimentos do Sr. Dombre em alguns processos de desobsessão acontecidos em Marmande, com alguns comentários de Kardec, em que afirma os benefícios das curas operadas à distância (Kardec, 1993c, p.38-43).

3 A EXPERIÊNCIA KARDECISTA

Inicialmente, devem-se contextualizar as palavras de Kardec nesses trechos citados de O livro dos médiuns. A Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, como se lê no seu regulamento, “tem por objeto o estudo de todos os fenômenos relativos às manifestações espíritas e suas aplicações às ciências morais, físicas, históricas e psicológicas” (Kardec, 1996, p.445), e Kardec ainda reafirma em artigo da Revista espírita: “Com este objetivo, recolhemos os fatos, examinamo-los, escrutamo-los naquilo que têm de mais íntimo, nós o comentamos, discutimo-los friamente, sem entusiasmo, e foi assim que chegamos a descobrir o admirável encadeamento em todas as partes dessa vasta ciência que toca os mais graves interesses da humanidade. Tal foi, até o presente, senhores, o objeto de nossos trabalhos, objeto perfeitamente caracterizado pelo simples título de Sociedade de Estudos Espíritas que adotamos” (Kardec, 2001, p.132). Portanto, quando fala no necessário controle de pessoas estranhas às reuniões, Kardec tem toda a razão, pois seria inconveniente a presença de estranhos que viessem às reuniões mediúnicas de estudo com o firme propósito de ver fraude e charlatanismo, ou que simplesmente buscassem seu convencimento das realidades espirituais, pois no mesmo artigo diz ainda: “as nossas sessões não são sessões de demonstração, sua publicidade não alcançaria, pois, o objetivo, e teria graves inconvenientes; com um público sem seleção, trazendo mais curiosidade do que desejo verdadeiro de se instruir, e ainda mais desejoso de criticar e escarnecer, seria impossível ter o recolhimento indispensável para toda manifestação séria” (p.131). Colocada essa questão com clareza, compreendem-se bem suas afirmações contidas no capítulo 29 de O livro dos médiuns, utilizadas, acredita-se, inadequadamente como refutação kardecista à presença de assistidos às reuniões de desobsessão. Kardec não realizou reuniões de desobsessão, a não ser de forma esporádica, e sob alguma solicitação, como se vêem exemplos espalhados por toda a Revista espírita.

Se não eram os argumentos kardecistas contidos em O livro dos médiuns referentes a reuniões de desobsessão, fica, dessarte, resolvida a primeira questão acerca das citações de Kardec, resta tratar da citação da Revista espírita que descreve os procedimentos do grupo a qual pertencia o Sr. Dombre em processos de desobsessão em Marmande. A passagem citada, contida na Revista espírita de fevereiro de 1866, não é a única que relata os fatos ocorridos em Marmande, há ainda outras cinco citações, respectivamente em fevereiro, março e junho de 1864, janeiro de 1865 e em junho de 1867. Todas essas descrições do Sr. Dombre sobre os fatos ocorridos em Marmande e circunvizinhança trazem os procedimentos de seu grupo no acompanhamento e cura de processos obsessivos. Um dos casos mais interessantes é, sem dúvida, o da jovem Thérèse B., que tinha crises regulares, todas as tardes, havia mais de oito meses, narrado nos textos de 1864. Ao entrar em contato com o guia espiritual do médium, Sr. L., que acompanhara o Sr. Dombre, foram instados a evocar todas as noites o espírito obsessor e a moralizá-lo, chamando-o pelo nome de Jules. Do dia 11 de janeiro, dia da primeira reunião, ao dia 18, os procedimentos foram feitos regularmente na casa da jovem vitimada pela grave obsessão, com as presenças de parentes e da própria menina. É no dia 16 de janeiro que Jules, o espírito obsessor, vira-se para a jovem e diz: “Terna criança (se dirige à sua vítima presente à sessão), tu que escolhi por minha presa, como o abutre a doce pomba, ora por mim, e que o nome de condenado se apague de tua memória. Recebi o batismo de amor das mãos do anjo do Senhor, e hoje visto a roupa da inocência. Pobre criança, desejo que tuas preces dirigidas por mim ao Senhor me livrem logo do remorso que vai-me seguir como uma expiação justamente merecida” (Kardec, 1993a, p.176). Ao final do relato do Sr. Dombre, Kardec tece alguns comentários: “Devemos um justo tributo de elogio aos nossos irmãos de Marmande, pelo tato, a prudência e o devotamento esclarecido dos quais deram prova nessa circunstância. Por este brilhante sucesso, Deus recompensou sua fé, sua perseverança e seu desinteresse moral, porque nisso não procuraram nenhuma satisfação de amor-próprio; provavelmente, não teria ali ocorrido o mesmo se o orgulho tivesse deslustrado a sua boa ação” (p.178). Os textos falam por si, não seriam necessários comentários adicionais, mas por conta da evidência, ressalta-se o procedimento do Sr. Dombre nesse caso, que mantém a presença da menina (de apenas treze anos!) durante a evocação do espírito que a atormenta; e, mais importante, os comentários gravemente elogiosos de Kardec aos procedimentos corretos do grupo de Marmande, refutando qualquer hipótese de fundamentar a ausência do assistido nas reuniões de desobsessão através de textos kardecistas.

Já no texto de janeiro de 1865, num novo relato de cura de obsessão feita pelo círculo espírita de Marmande, vê-se outra jovem, também de treze anos, Valentine Laurent, ter crises convulsivas que se renovavam várias vezes por dia. Após o uso de recursos vários, médicos e párocos, o grupo resolveu evocar seus guias espirituais e receberam a recomendação de evocar o espírito obsessor, nomeando-o Germaine. Convidando o pai da jovem, realizaram uma primeira sessão em 16 de setembro de 1864, com a finalidade de iniciar o trabalho de moralização de Germaine e de mostrar ao pai da vítima a verdadeira razão do problema de sua filha. A partir do dia 17 de setembro, o Sr. Dombre freqüentou a casa da família diariamente para testemunhar as crises e conhecer melhor o problema. No dia 21 de setembro, convidou pai e filha, a menina Valentine, para estarem presentes à reunião (Kardec, 1993b, p.10), e, lá, o grupo recebeu de seus guias uma mensagem a ser passada ao espírito: “Germaine, sois nossa irmã; esta jovem é também nossa irmã e a vossa. Se outrora alguma ação funesta vos ligou, e fez pesar sobre vós duas a justiça divina, não podeis dobrar o Juiz supremo. [...] Nesta família onde provocais a maldição, não será falado de vós senão o bem; haverá ali reconhecimento; essa criança pedirá também por vós, e se o ódio vos desuniu, o amor um dia vos reunirá” (p.10-11). Continua mais adiante o Sr. Dombre: “O dia 23 passou sem crise, como o da véspera. À noite a jovem vai com seu pai à sessão, para ouvir Germaine por quem ela já levava muito interesse” (p.16). E ainda no mesmo texto, após o processo de moralização de Germaine já ter resultados, lê-se o diálogo entre a menina e o espírito: “‘Dizei-me todos, tu sobretudo, pobre jovem, que me perdoais. Tenho necessidade de ouvir esta palavra sair de teu coração. Dai-me, se vos apraz, essa consolação’. A jovem Valentine lhe disse: ‘Sim, Germaine, eu vos perdôo; muito mais, vos amo!’” (p.17). Aqui, mais uma vez, os textos citados são límpidos, não restando qualquer argumentação contrária quanto ao fato da presença da jovem nas reuniões, e mais, participando inclusive dos diálogos com o espírito obsessor.

Só os fatos relatados nos casos de Marmande já seriam bastante suficientes para rechaçar qualquer argumentação contrária à presença dos assistidos nas reuniões de desobsessão. Todavia, não se limitará a eles, para não haver qualquer possibilidade de dúvidas sobre esse ponto. Visita-se agora um caso relatado pelo Sr. Delanne, no número de maio de 1865, no qual conta: “Numa outra sessão, fez-se a evocação do espírito que obsidiava, há dez anos, um operário chamado Joseph, agora em vias de cura. Jamais fiquei tão penosamente emocionado quanto em presença das dores do paciente no momento da evocação; calmo de início, foi tomado de repente de sobressaltos, de espasmos e de tremores nervosos; assim tomado por seu inimigo invisível e se agitou em convulsões terríveis; o peito se enche, sufoca, depois, retomando sua respiração, se contorce como uma serpente, rola na terra, se levanta de um pulo, se bate na cabeça. Não pronunciava senão palavras entrecortadas, sobretudo a palavra: Não! Não! O médium, que é uma senhora, estava em prece; ela tomou a pena, e eis que o invisível deixando sua presa por um instante, se apoderou de sua mão, e o teria assassinado se o deixasse fazê-lo” (Kardec, 1993b, p.143). Aqui Delanne relata curas através de seu grupo espírita, com a presença do assistido.

Ainda outro caso, relatado no número de junho de 1865, de uma cura realizada pelo grupo de espíritas de Barcelona, na Espanha, informa que a Sra. Rose N., atingida muitos anos “por ataques espasmódicos que se repetiam muito freqüentemente e com violência” (Kardec, 1993b, p.173), recorreu a vários recursos médicos e religiosos, sem qualquer resultado. Em julho de 1864 o grupo teve notícias do fato e se propôs a auxiliar a pobre senhora, afirmando o relato: “Aceitamos com zelo essa ocasião de fazer uma boa obra; reunimos vários adeptos sinceros, e fizemos vir a doente. Alguns minutos bastaram para reconhecer a causa da doença de Rose; era, com efeito, uma obsessão das mais terríveis. Tivemos muita dificuldade em fazer o obsessor vir ao nosso chamado. Ele foi muito violento, nos respondeu algumas palavras sem nexo, e logo se lançou com uma fúria sobre sua vítima, à qual deu uma crise violenta que foi, no entanto, logo acalmada pelo magnetizador” (p.174). O relato afirma que depois de algumas reuniões mediúnicas de moralização do espírito, sempre com a presença da vítima, essa estava completamente curada. Após o caso exposto, Kardec faz algumas considerações e afirma: “Os fatos de curas como este, como os de Marmande e outros não menos meritórios, sem dúvida, são um encorajamento; são também excelentes lições práticas que mostram a quais resultados se podem chegar pela fé, pela perseverança, e uma sábia e inteligente direção” (p.177). Aqui cabem alguns comentários adicionais, além de Kardec elogiar peremptoriamente o trabalho realizado pelo grupo de Barcelona. Enquanto o espírito Bezerra de Menezes, segundo citações já comentadas, chama os dirigentes de reuniões de desobsessão, que contam com a presença dos assistidos, de incompetentes e despreparados, Kardec os chama de sábios e inteligentes.

Se ainda restar um mínimo de dúvida sobre esse ponto, cita-se ainda o caso relatado na Revista espírita de junho de 1867, no artigo Nova sociedade espírita de Bordeaux, no qual o seu presidente, Sr. Peyranne, descreve as atividades desse grupo espírita no seu relatório anual, e dentre essas atividades fala da desobsessão: “Há de resto, em Bordeaux, muitos casos de obsessão, e uma sessão por semana especialmente consagrada à evocação e à moralização dos obsessores está longe de ser suficiente, uma vez que o médium curador, acompanhado de um médium escrevente, de um evocador e, freqüentemente, de certos de nossos irmãos, vai ao domicílio dos doentes, a fim de treinar os obsessores e ali virem mais facilmente, lado a lado” (Kardec, 1993d, p.178). Após esse e outros relatos, Kardec comenta: “Não podemos senão aplaudir o programa da Sociedade de Bordeaux e felicitá-la por seu devotamento e a inteligente direção de seus trabalhos. [...] A maneira pela qual ela procede para o tratamento das obsessões é ao mesmo tempo notável e instrutiva, e melhor prova de que essa maneira é boa, é de que ela triunfa” (p.181). Aqui se vê Kardec, mais uma vez, elogiando a direção da casa pela forma como conduz seus trabalhos, e sobre a reunião de desobsessão, especificamente, é contundente, adjetivando-a de “notável e instrutiva”.

Como já dito no início desse estudo, e demonstrado pelas citações da Revista espírita, Kardec dá preferência à presença dos assistidos nas reuniões de acompanhamento mediúnico de desobsessão, não obstante não invalidar a possibilidade do atendimento à distância. Inclusive, na região de Marmande, no artigo de fevereiro de 1866, que foi utilizado para afirmar a contrariedade de Kardec em relação à presença de assistidos em reuniões de desobsessão, há um relato de uma cura de obsessão operada à distância. Nele, o assistido, um camponês vitimado “de uma loucura de tal modo furiosa, que perseguia as pessoas a golpes de forcado para matá-las, e que na falta de pessoas, atacava os animais do galinheiro” (Kardec, 1993c, p.40), residia numa aldeia distante algumas léguas da região de Marmande. A família do camponês foi orientada a interná-lo em uma casa para alienados, mas antes de executar tal orientação, “um de seus parentes tendo ouvido falar das curas obtidas em Marmande, em casos semelhantes, veio procurar o Sr. Dombre e lhe disse: ‘Senhor, me disseram que curais os loucos, é por isso que venho vos procurar’” (p.40). A partir desse momento, não sem antes consultar seus guias espirituais, o grupo de Marmande passou a evocar o espírito obsessor do camponês, e solicitou que o parente os procurasse em Marmande a cada dois dias para dar notícias sobre o assistido. Após oito dias de reuniões, conseguiram moralizar o espírito que perseguia o camponês, que passou a apresentar melhorias sensíveis em seu comportamento social. Kardec se vê admirado com o resultado e comenta: “Poder-se-ia colocar à conta da imaginação as curas operadas à distância, sobre pessoas que jamais se viram, sem emprego de nenhum agente material qualquer” (p.41). Percebe-se, portanto, que Kardec, longe de recriminar a presença do assistido, antes se entusiasma com os resultados obtidos, apesar da sua ausência.

Mas em vários casos cuja presença do atendido é inviável, talvez pela distância ou pela impossibilidade de locomoção (problema bem superado pelo grupo de Bordeaux), o acompanhamento à distância e as preces são o melhor meio de assisti-lo. Um exemplo que se vê na Revista espírita de janeiro de 1863, quando discute os fenômenos de Morzine, ilustra essa possibilidade. É uma cura através de preces relatada por um membro da Sociedade Espírita de Paris, de uma jovem que casou de forma contrariada, o que “levou-a a uma alteração em suas faculdades mentais” (Kardec, 2000, p.5). Um espírito superior orientou-o assim: “A idéia fixa dessa senhora, por sua própria causa, atrai, ao seu redor, uma multidão de espíritos maus que a envolvem com seu fluido, mantendo-a em suas idéias, e impedindo que cheguem a ela as boas influências. Os espíritos dessa natureza pululam sempre nos meios semelhantes ao que ela se encontra, e são, freqüentemente, um obstáculo à cura dos enfermos. No entanto, podeis curá-la, mas é preciso para isso uma força moral capaz de vencer a resistência, e essa força não é dada a um só. Que cinco ou seis espíritas sinceros se reúnam todos os dias, durante alguns instantes, e peçam com fervor a Deus e aos bons espíritos para assisti-la; que vossa ardente prece seja, ao mesmo tempo, uma magnetização mental; não tendes, para isto, necessidade de estar junto dela, ao contrário; pelo pensamento podeis levar sobre ela uma corrente fluídica salutar [...]” (p.6).

Em fevereiro de 1863, ainda tratando dos problemas de Morzine, Kardec relata um delírio sofrido por um senhor de seu conhecimento que reside em outra cidade da província. Atendido por médicos, foi diagnosticada loucura e recomendado que fosse internado numa casa de saúde. Dispondo-se a ajudar, Kardec consulta um espírito sobre o problema, e esse afirma: “Esse senhor não é louco, mas da maneira a que isso se prende, poderia tornar-se; bem mais, poderia matá-lo. O remédio para o seu mal está no próprio espiritismo, e é tomado em contra-senso” (Kardec, 2000, p.35). Kardec então pergunta: “Poder-se-ia agir sobre ele daqui?” (p.35), e o espírito responde: “Sim, sem dúvida; podeis fazer-lhe o bem, mas vossa ação é paralisada pela má vontade daqueles que o cercam” (p.35). A pergunta de Kardec, se para ele fosse normal a ausência do assistido em suas reuniões, soaria incompreensível. Claro que se perguntou, é porque não estava convicto da eficácia do atendimento à distância.

Citam-se agora alguns trechos do Evangelho, conforme o capítulo 15 de A gênese, nos quais Jesus opera curas em homens possessos. Em Mc 1, 21-27, lê-se que “achava-se na sinagoga um homem possesso de um espírito impuro, que exclamou: – Que há entre ti e nós, Jesus de Nazaré? Vieste para nos perder? Sei quem és: és o santo de Deus. – Jesus, porém, falando-lhe ameaçadoramente, disse: Cala-te e sai desse homem. – Então, o espírito impuro, agitando o homem em violentas convulsões, saiu dele. Ficaram todos tão surpreendidos que uns aos outros perguntavam: Que é isto? Que nova doutrina é esta? Ele dá ordem com império, até aos espíritos impuros, e estes lhe obedecem” (Kardec, 1984, p.327-328). O homem doente estava na sinagoga, no meio de todos, e lá Jesus expulsa o espírito impuro. Em Mt 9, 32-34, apresentam a Jesus “um homem mudo, possesso do demônio” (p.328), que ele cura no meio do povo. Em Mc 9, 13-28, Jesus pede, em torno de uma grande multidão, ao pai de um rapaz, possesso de um espírito mudo, que lho traga para curá-lo. Em Mt 12, 22-28, apresentam-lhe um possesso surdo e mudo que ele cura no meio do povo. Há ainda outras passagens de curas de obsessões realizadas por Jesus, e vê-se, em quase todas, o procedimento de levar os doentes à presença de Jesus, e a cura acontecer à vista de todos. Kardec, comentando essas passagens, diz que a “prova da participação de uma inteligência oculta, em tal caso, ressalta de um fato material: são as múltiplas curas radicais obtidas, nalguns centros espíritas, pela só evocação e doutrinação dos espíritos obsessores, sem magnetização, nem medicamentos e, muitas vezes, na ausência do paciente e a grande distância deste” (p.329-330), ressaltando, mais uma vez, o fato de que a cura das obsessões na ausência dos assistidos ser também uma possibilidade real.

A desobsessão é tarefa essencial de qualquer casa espírita que queira seguir as orientações dos espíritos que participaram da obra kardecista, como se vê em O livro dos médiuns, no qual os espíritos propõem como atividade regular, após pergunta de Kardec, reuniões que visassem o auxílio aos espíritos errantes: “P. Não se pode também combater a influência dos maus espíritos, moralizando-os? R. Sim, mas é o que não se faz e é o que não se deve descurar de fazer, porquanto, muitas vezes, isso constitui uma tarefa que vos é dada e que deveis desempenhar caridosa e religiosamente. Por meio de sábios conselhos, é possível induzi-los ao arrependimento e apressar-lhes o progresso” (Kardec, 1996, p.322); ou ainda em O livro dos espíritos, pergunta 476: “P. Mas, não pode acontecer que a fascinação exercida pelo mau espírito seja de tal ordem que o subjugado não a perceba? Sendo assim, poderá uma terceira pessoa fazer que cesse a sujeição da outra? E, nesse caso, qual deve ser a condição dessa terceira pessoa? R. Sendo ela um homem de bem, a sua vontade poderá ter eficácia, desde que apele para o concurso dos bons espíritos, porque, quanto mais digna for a pessoa, tanto maior poder terá sobre os espíritos imperfeitos, para afastá-los, e sobre os bons, para os atrair. Todavia, nada poderá, se o que estiver subjugado não lhe prestar o seu concurso. Há pessoas a quem agrada uma dependência que lhes lisonjeia os gostos e os desejos. Qualquer, porém, que seja o caso, aquele que não tiver puro o coração nenhuma influência exercerá. Os bons espíritos não lhe atendem ao chamado e os maus não o temem” (Kardec, 1995, p.251). E o método de evocação de espíritos também é colocado em O livro dos médiuns: “Convém igualmente que só com muita prudência se façam evocações, na ausência das pessoas que as pediram, sendo mesmo preferível que não sejam feitas nessas condições, visto que somente aquelas pessoas se acham aptas a analisar as respostas, a julgar da identidade, a provocar esclarecimentos, se for oportuno, e a formular questões incidentes, que as circunstâncias indiquem. Além disso, a presença delas é um laço que atrai o espírito, quase sempre pouco disposto a se comunicar com estranhos, que lhes não inspiram nenhuma simpatia” (Kardec, 1996, p.351).

4 CONCLUSÃO

Diante de evidências tão explícitas, de exemplos tão contundentes, seria, no mínimo, incoerência afirmar a adesão de Kardec à sugestão dos espíritos e da FEB para que não se façam reuniões de desobsessão com a presença dos atendidos. Ao contrário, como já afirmado, sugere-se às casas espíritas que verdadeiramente querem seguir as orientações kardecistas que façam, por caridade e eficácia, seus atendidos adentrarem suas reuniões de desobsessão, deixando o atendimento sem sua presença limitado às necessidades pontuais, como a distância ou uma doença impeditiva. Isso não significa afirmar que as reuniões tornar-se-ão públicas, visto que o caráter privativo e íntimo dos encontros mediúnicos continua muito bem preservado.

NOTA

[1] Em 2007 a FEB lançou uma nova edição desse manual, com novo texto aprovado pelo Conselho Federativo Nacional, seu órgão deliberativo, em reunião de novembro de 2006. Na nova edição, as referências à obra de André Luiz como base para a reunião de desobsessão desapareceram, sem, entretanto, deixar de referir-se à necessidade da ausência de assistidos na reunião: “Deve-se evitar a presença de pessoas necessitadas de auxílio espiritual durante a fase de manifestação dos espíritos” (FEB, 2007, p.63).

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