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domingo, 26 de outubro de 2008

Bezerra – O homem e o filme

Nícia Cunha
Empresária do setor de serviços; delegada da CEPA (Confederação Espírita Pan-Americana) em Cuiabá, MT.

Fonte:
http://www.cepanet.org/

O filme Bezerra de Menezes - o diário de um espírito é lento, escuro, pesado, consiste em doutrinação enfadonha. Inicia-se com um trecho do livro Brasil: coração do mundo, pátria do evangelho do espírito Humberto de Campos, reforçando o mito judaico cristão da "terra prometida, do povo escolhido". Pretensão absurda, mau julgamento de Deus, que seria assim, injusto e parcial nos seus desígnios, em relação a outras nações e povos, até mais moralizados que nós, os brasileiros.

Tem um teor falso, desde os pequenos detalhes, tais como as barbas e os bigodes de todos os personagens, especialmente os do ator Caio Blat, até o mais importante: a infidelidade conceitual ao espiritismo kardequiano, merecendo mesmo a classificação de "falsidade ideológica". Retrata apenas, e neste caso muito bem, a religião espírita implantada no Brasil.

É igualmente falso em termos de apresentação da personalidade do biografado, pois pelo que consta, Bezerra não era propriamente um "manso". Tinha suas idiossincrasias, absorvidas por uma caracterização apática, passiva, que não era a sua marca.

Não é falso ao mostrar tratamentos médicos e distribuição de remédios manipulados in loco, feitos sem controles sanitários. Prática, felizmente, em declínio no Brasil, por se tratar de exercício ilegal da medicina, embora ainda em uso sob a forma de intervenções espirituais. O ator Carlos Verezza, que personaliza o biografado, em entrevista dada ao Jô Soares, em seu programa da TV Globo, afirmou ter se submetido a uma cirurgia espiritual no Lar de Frei Luís, do Rio de Janeiro, com bons resultados.

Não é falso na caracterização de uma sessão espírita: dirigentes sisudos com falas e atitudes pastorais, trocando entre si olhares assustados, quando interpelados sobre questões doutrinárias que julgam intocáveis; ambiente místico, platéia silenciosa e não participativa, mesa com toalha branca, flores e copos d'água para o que se convencionou chamar de "fluidificação". Práticas, todas elas, não procedentes da codificação, constituindo-se em sistemas e modelos introduzidos pelo espiritismo brasileiro.

Os espíritas sempre dizem que são contra a santificação de seus vultos. Mas o filme e os depoimentos pessoais ali inseridos são pura demonstração de reverência idólatra. Seriam perfeitamente dispensáveis, pois foram ali colocados unicamente para fazer proselitismo. Apenas explicitam fanatismo, além de quebrar a linha estética do filme e o ritmo narrativo, até então harmônicos naquilo que seus diretores se propuseram a fazer.

Mesmo discordando de Bezerra em vários pontos, eu o admiro e respeito, especialmente por sua inegável bondade, pela fidelidade à sua concepção da doutrina espírita, pela coragem de haver assumido um posicionamento público que, àquela época, só lhe trazia problemas. Entretanto, acho que Bezerra fez mais mal do que bem à doutrina, em função do desvirtuamento conceitual a que a submeteu. No filme isso fica mais do que evidente na leitura feita por seus irmãos da carta que ele lhes escreveu, contestando-os quanto à sua exclusão do seio da família. Nela dá testemunho de próprio punho de sua fé em Deus Pai, Filho e Espírito Santo, em um Jesus divinizado, com missão de salvador dos homens. E pelos teores das mensagens mediúnicas que lhe são atribuídas ainda hoje continua com as mesmas crenças.

São conceitos que não constam de nenhum livro de Kardec, pois ele somente endossou o ensino moral de Jesus, desconsiderando a história canônica com seus milagres, os atributos de filiação divina e santidade absoluta.

Mesmo assim, é necessário contextualizar os posicionamentos de Bezerra. Seria demais, querer que alguém nascido no século XIX (29/08/1831) em pequena cidade do interior do Ceará, em família tradicional e católica, não tivesse atavismos e entendimentos próprios de um ambiente cristão, conforme a definição formal que é a de quem crê na Santíssima Trindade, na salvação através de Jesus, na graça do batismo para livrar-se do pecado original etc.

Afinal, aceitando o espiritismo roustainguista, Bezerra assimilou o que sua mente racional aprovou, abandonando apenas os teores mais absurdos da fé que antes professava. Sentiu-se, portanto, extremamente confortável com o neocatolicismo roustainguista. Mas, paradoxalmente, passou a aceitar as esquisitices fantasiosas de Roustaing. Deu força, portanto, à versão mística do espiritismo da qual foi o principal introdutor, sedimentando-a na FEB - e esta, nas entidades adesas -, implantando a feição religiosa neo-católica que até hoje domina o movimento espírita brasileiro e da qual resultam os fundamentalismos vigentes na maior parte de suas instituições.

Assim, minhas discordâncias de Roustaing e Bezerra não são apenas quanto às questões do corpo fluídico de Jesus e do criptógamo carnudo. Afinal, estes temas ficaram praticamente esquecidos, pelo desconhecimento da obra roustainguista. Minha ressalva é quanto ao teor místico e religioso deles oriundo, que impregnou todo o espiritismo pátrio. Neste sentido, há espíritas que são roustainguistas sem o saber: imaginam que a questão se resume nos pontos polêmicos acima mencionados, esquecendo-se de suas próprias atitudes, marcadamente religiosas. Não se dão conta de que o endeusamento de Jesus, as idéias salvacionistas, o mariolatrismo, a noção distorcida da lei de causa e efeito, o ufanismo pátrio, a pretensão orgulhosa de superioridade do ensinamento espírita, as interpretações católicas das dimensões espirituais, os posicionamentos anti-científicos que vigoram no movimento espírita derivam dos conceitos introduzidos por Roustaing e endossados por Bezerra.

Creio que seu erro foi - e o do espírita brasileiro em geral ainda é - a cristalização da doutrina espírita, tornando-a dogmática desde que transformada em religião. Ambos abandonaram os aspectos filosóficos e científicos defendidos por Kardec, que elegeu a MORALIDADE e não a RELIGIÃO como característica da doutrina, recomendando inclusive, que fosse progressiva e dinamicamente atualizada segundo parâmetros científicos.

Finalizando, acho que a película não fez jus nem ao que Bezerra teve de bom. Apesar dos esforços e das boas intenções, um desperdício de oportunidade e um desserviço à OBRA KARDEQUIANA, tão desfigurada por divulgadores que não a compreenderam.

Penso que o filme só vai agradar mesmo aos roustainguistas, conscientes ou inconscientes dessa condição.

domingo, 15 de junho de 2008

Liberdade para avançar

Cadeirantes celebram liberação das pesquisas em frente ao STF
© Wilson Dias / ABRArtigo publicado na Revista Pesquisa FAPESP, 148, junho 2008, p.28-9.

Decisão histórica do STF dá aval à busca da primeira linhagem brasileira de células-tronco embrionárias

Foi o mais importante julgamento em mais de cem anos de história do Supremo Tribunal Federal (STF), na avaliação de Celso de Mello, um de seus ministros. Na tarde do dia 29 de maio, os 11 juízes da Corte autorizaram o prosseguimento das pesquisas com células-tronco extraídas de embriões humanos no Brasil ao rejeitarem a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) proposta pelo ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles contra um dos artigos da Lei de Biossegurança (nº 11.105). Seis dos votos declararam a improcedência da Adin. Os outros cinco ministros, embora não tenham considerado inconstitucional a lei, fizeram ressalvas que, em maior ou menor grau, poderiam impor limites à atividade científica. Mas foram votos vencidos.

Com a decisão histórica, o Supremo deu aval para a retomada das pesquisas brasileiras com células-tronco embrionárias, que permaneciam em banho-maria devido à incerteza causada pela Adin. “Esse julgamento tirou uma espada de nossas cabeças”, afirma a geneticista Lygia da Veiga Pereira, que espera obter em seu laboratório na Universidade de São Paulo (USP) a primeira linhagem brasileira de um tipo especial de célula. Capazes de originar diferentes tecidos do corpo –como pele, ossos ou neurônios–, as células-tronco embrionárias despertam há tempos o interesse de pesquisadores e da população no mundo todo por representarem uma esperança de tratamento para problemas graves contra os quais medicamentos não surtem o efeito desejado. A produção de uma linhagem nacional de células-tronco embrionárias humanas é um passo importante para a ciência brasileira. “Ela deve garantir autonomia ao país, que pode deixar de depender da importação de linhagens produzidas no exterior”, diz Lygia, que trabalha nessa missão desde 2005 com Stevens Rehen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Segui em frente acreditando no bom senso do STF”, conta Lygia.

Não é uma tarefa simples. Desenvolver uma linhagem significa extrair células de um embrião em estágio inicial de desenvolvimento e fazê-las se reproduzir em laboratório sem que percam sua característica mais interessante: a pluripotência, capacidade de originar outras células do corpo. Usando uma técnica inovadora –em que se cultivam células de embriões humanos sobre fibroblastos humanos–, Lygia e Rehen já conseguiram gerar uma linhagem brasileira, mas os resultados ainda não foram plenamente satisfatórios. Agora pretendem repetir o experimento adotando o método clássico usado no mundo todo, em que essas células são cultivadas sobre fibroblastos de camundongos. “Elas serão adequadas para uso em pesquisa, mas não para tratamentos”, explica Lygia, que pretende repassar a técnica para outros laboratórios do país tão logo ela seja dominada.

“Esse é um aprendizado novo”, diz o médico Antonio Carlos Campos de Carvalho, pesquisador do Instituto Nacional de Cardiologia e da UFRJ, onde também trabalha com linhagens de células-tronco embrionárias humanas importadas. Carvalho e outros quatro grupos da UFRJ tentam desde 2005 aumentar a obtenção de determinados tipos de células maduras, que poderiam ser usadas no reparo de algum tecido danificado. “Com a decisão do STF, ganhamos tranqüilidade para colocar estudantes de mestrado e doutorado para trabalhar nesses projetos”, afirma Carvalho.

A geneticista Mayana Zatz, líder da mobilização em favor da liberação das pesquisas, diz que o potencial terapêutico das células-tronco embrionárias é imenso. “Mas é preciso ter paciência: não se sabe quando e nem quais doenças poderão realmente ser tratadas”, adverte. “Os pesquisadores já estavam trabalhando com células-tronco embrionárias, tanto importadas como brasileiras – porque não era proibido. Mas ninguém estava investindo muito nisso porque não se sabia se elas seriam interrompidas. Agora os pesquisadores vão se lançar nesse caminho: submeter projetos, conseguir financiamento, fazer pesquisa”, diz Mayana. A pesquisadora ressaltou que o aval do STF não significará uma redução da pesquisa com as células-tronco adultas, que podem ser extraídas de vários órgãos, mas não têm a versatilidade das embrionárias. “A pesquisa com células adultas trará resultados a curto prazo, mas as em­brionárias permitirão tratar uma gama mais ampla de doenças”, afirmou.

O ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, lembrou que as pesquisas com células-tronco apoiadas pelo governo federal desde 2004 poderão ter os primeiros resultados em 2009. Até agora esses projetos receberam cerca de R$ 24 milhões. “É certo que, para os primeiros resultados concretos, temos uma longa estrada pela frente. Mas é preciso destacar que essas pesquisas buscam trazer respostas para agravos como as lesões raquimedulares, diabetes e doenças genéticas”, explicou o ministro.

Clonagem proibida
As pesquisas com células-tronco embrionárias estão previstas na Lei Nacional de Biossegurança, sancionada em março de 2005 (ver reportagem de capa de Pesquisa FAPESP nº 110). O uso de embriões foi liberado em condições restritas: só é permitido o uso de células-tronco de embriões excedentes dos processos de fertilização in vitro –mesmo assim caso se mostrem inviáveis para reprodução ou se estiverem congelados há pelo menos três anos. Ficou proibida a clonagem de embriões que, na teoria, poderia gerar células e tecidos feitos sob medida para tratar um indivíduo.

Mas logo que a lei entrou em vigor surgiu o impasse jurídico. Em maio de 2005 o então procurador-geral da Re­pública, Cláudio Fonteles, propôs a Adin ao STF. Ele contestou o artigo 5º da lei, justamente o que dispõe sobre a utilização de embriões armazenados em clínicas de reprodução (ver Pesquisa FAPESP nº 113). Na avaliação de Fonteles, tais dispositivos chocavam-se com a proteção que a Constituição confere à vida humana. A ação suscitou a primeira audiência pública feita na história do Supremo (ver Pesquisa FAPESP nº 135). Por iniciativa do ministro relator, Carlos Ayres Britto, o STF reuniu 22 cientistas em Brasília para debater a seguinte questão: quando começa a vida? O julgamento só teria início no dia 5 de março, com a leitura do voto de Ayres Britto, que refutou a tese de Fonteles. “Deixar de contribuir para devolver pessoas à plenitude da vida não soaria como desumana omissão de socorro?”, indagou Britto. A então presidente da corte, a ministra Ellen Gracie, acompanhou o voto do relator, mas a sessão foi interrompida por um pedido de vista do ministro Carlos Alberto Menezes Direito, e só retomada em 28 de maio.

Direito, que pertence à União dos Ju­ristas Católicos do Rio de Janeiro, pro­pôs em seu voto que a extração de células-tronco estaria condicionada à não destruição do embrião congelado. Além dele, os ministros Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Gilmar Mendes e Cezar Peluso fizeram ressalvas que previam limites à pesquisa. Mas prevaleceu a tese do relator, apoiada também pelos ministros Marco Aurélio Mello, Ellen Gracie, Celso de Mello, Cármen Lúcia e Joaquim Barbosa, que votaram pela liberação das pesquisas nos termos da Lei de Biossegurança, sem restrições.

sábado, 31 de maio de 2008

Um espiritismo ovino

O médium Medrado, fundador da Cidade da Luz, fez publicar um artigo no jornal A Tarde, de Salvador, BA, no dia 28 de maio, em que argumenta sobre as tantas lutas judiciais em que se mete, tal qual um cavaleiro andante em busca de aventuras e fantasias.

Não quero nessa mensagem entrar no mérito de seus embates pirotécnicos, mas sim comentar o eixo de sua argumentação. Seguem abaixo alguns trechos daquilo que ele considera "bom senso" (ave Descartes!):

"[...]
"Então, para que não pairem dúvidas, nem distorçam, guardo o respeito a você e explico humildemente:
"1 - Sou um pastor, e, como tal, você crendo ou não no que prego, gostando ou não do meu jeito, quero também pregar à minha comunidade minhas verdades, quero levar o que julgo certo a todos;
"[...]
"Agora me responda, ouvindo o bom-senso
(sic), a razão:
"1 - Não foi justo o meu pleito de pastor, na minha fé, na minha religião?
"2 - Não tenho o direito de buscar para os meus fiéis o que o seu pastor busca para você?
"3 - Não tenho o direito de reclamar, como pai que me sinto, do alimento espiritual para os meus filhos?
"Foi isto o que eu fiz.
"[...]"


Se você é espírita, não morra de rir. Contenha-se, por favor. Afinal, esse é o primeiro pastor espírita assumido! Quem se habilita a ser seu filho... ou ovelha?!

O ridículo é quase insuperável. Confesso que poucas vezes na minha caminhada espírita vi, ouvi ou li tamanha descaracterização das propostas espíritas. Ao reler Kardec nalguns artigos da sua Revista espírita ou em trechos de sua Viagem espírita em 1862, fico a pensar se sou tão toscamente obtuso a ponto de nada (absolutamente nada!) compreender daquilo que foi originalmente proposto.

Se você é espírita, imagine Kardec falando em ser pastor e ter fiéis seguidores, ou mesmo sentindo-se "pai" espiritual de seja lá quem for. Nada é mais disforme, mais incoerente e mais insólito do que essa patuscada religiosa, que certamente não encontra eco algum no bojo das propostas espíritas kardecistas.

É o sincrético movimento espírita religioso, que se imiscui no grande filão dum mercado religioso já tão bem explorado por pastores de diversas denominações. Mais uma, menos uma... nenhuma diferença.

Olha no que deu o espiritismo...

Confesso minha extrema dificuldade em assumir uma identidade espírita diante de exemplos tão eloquentemente desconexos e pouco elaborados.

sábado, 24 de maio de 2008

Indignado e envergonhado

Vergonha. É a única palavra que me vem em mente sobre este caso tão absurdo. "Isto é uma vergonha", diria o jornalista Boris Casoy. Sinto-me duplamente envergonhado: por ser baiano e por ser espírita (esse último adjetivo cada vez menos adequado...).

O médium Medrado, aquele que lutou na justiça por casamentos e sacerdócio, agora protagoniza outra infeliz batalha e recorre ao instrumento dos covardes: a censura.

O mais interessante é que Kardec rebateu aos seus críticos, foi censurado como no episódio dos seus livros queimados em Barcelona, mas jamais usou desse instrumento contra seus debatedores. A livre manifestação das idéias é valor inestimável e não pode ser conspurcado por um médium à la Dom Quixote que, ao invés de lutar simplesmente expondo suas idéias, mesmo que absurdas, prefere intimidar usando a falácia dos recursos jurídicos.

Não concordo em nada com as idéias do tal padre no seu livro, muito menos (ou talvez menos ainda) com as idéias desse estranho exemplar "espírita" que realiza casamentos, mas certamente reconheço seus direitos inalienáveis de dizer e publicar o que bem entenderem.

É uma pena, ou melhor, uma vergonha, que um exemplo desse naipe esteja associado ao nome espiritismo.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Vergonha espírita!


O médium José Medrado apronta mais uma das suas, envergonhando todo o movimento espírita baiano: entrou com ação cautelar na Justiça pedindo a censura (sim, creiam: a censura!) do livro do padre católico Jonas Abib, intitulado Sim, sim! Não, não! Reflexões de cura e libertação.

Diante do inusitado e vergonhoso episódio, cabe aos espíritas os mais sinceros pedidos de desculpas ao padre, que teve sua opinião censurada pela atuação do promotor Almiro Sena, o mesmo que quis mudar a história do Brasil apresentada na novela Sinhá Moça da Rede Globo.

Senhor Jonas Abib, em meu nome, como espírita, peço desculpas pelo devaneio persecutório dum estranho líder religioso, que se diz espírita, mas em nada se alinha às propostas de tolerância e compreensão apresentadas pelo espiritismo. Kardec sofreu perseguição intensa dos movimentos religiosos e filosóficos de sua época, e os espíritas aprenderam, então, o valoroso respeito à liberdade de opinião, mesmo que frontalmente contrárias às propostas espíritas.

E vamos queimar livros

Publicado originalmente no blog Censura não! em 17/05/2008, por rodveleda.http://xocensura.wordpress.com/2008/05/

A queima de livros voltou na Bahia! O Folha de S.Paulo de hoje [17/05] traz uma matéria reportando uma decisão da Justiça Estadual de recolher todos os exemplares do livro Sim, Sim! Não, Não! Reflexões de cura e libertação, escrito pelo monsenhor Jonas Abib, pois o voluntarioso Ministério Público da Bahia acredita que Abib teria cometido o crime de “prática e incitação de discriminação ou preconceito religioso”. Para o promotor Almiro Sena Soares Filho, o mesmo que processou a Rede Globo por mostrar escravos apanhando na novela Sinhá Moça (algo que não acontecia, de acordo com a Nova e Revisada História do Brasil de Almiro de Sena Soares Fo.), Abib faria:

"Afirmações inverídicas e preconceituosas à religião espírita e às religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé, além de flagrante incitação à destruição e ao desrespeito aos seus objetos de culto".

De acordo com a promotoria, já teriam sido vendidas 400 mil cópias do livro.

Não é a primeira vez que uma crítica a religiões afro-brasileiras sofre censura na Bahia. O livro Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios? de Edir Macedo também foi censurado pela Polícia do Pensamento, filial Ministério Público Federal.

Pois eu li a liminar do processo contra Jonas Abib (1957502-1/2008), o padre que está tendo um livro queimado graças a uma ação judicial. O juiz Schmitt solta uma afirmação bastante contraditória, ao dizer que

"A proteção a liberdade de consciência e de crença, bem como do livre exercício dos cultos religiosos, encontra-se alçado a nível constitucional, assim como a impossibilidade de alguém ser privado de direitos por motivo de fé ou de ideologia filosófica ou política, consoante encartado nos incisos VI e VII, do artigo 5º, da CF/88".

Como assim? Se é constitucionalmente impossível privar alguém devido a ideologia ou fé, como então o juiz manda

"O imediato recolhimento, em todas as livrarias e bancas de jornal e revistas localizadas nesta Capital, dos exemplares postos a venda da obra Sim, Sim! Não, Não! Reflexões de cura e libertação, de autoria do acusado e publicada pela Editora Canção Nova".

Ora, para mim isto é impedir uma pessoa de se expressar livremente devido ao conteúdo da mensagem, que nada mais é do que a exteriorização da “fé ou de ideologia filosófica ou política”. Além disso, a liminar contém um outro absurdo:

"O perigo da demora está evidente, uma vez que a disseminação das idéias defendidas pelo acusado deve ser provisoriamente cessada, até que o mérito do caso em tela seja resolvido, como forma de evitar possíveis danos irreparáveis ao patrimônio cultural e à dignidade da pessoa humana (sic), sobretudo daqueles que tem sua matriz religiosa nas religiões atacadas pelo conteúdo do livro em debate. Ademais, o número trazido de vendagem da obra, igualmente, reclama a adoção desta medida, como forma de buscar se evitar um maior acirramento de conflitos étnico-religiosos".

“Maior acirramento de conflitos étnicos-religiosos”? Desde quando o livro estaria causando conflitos étnicos-religiosos? Aliás, desde quando uma religião tem a ver com a etnia de alguém? Salvo melhor juízo, o objetivo de qualquer religião é arregimentar o maior número possível de seres humanos, e não de pessoas humanas (sic) algo que só existe no gabinete de Schmitt, se não toda a humanidade.

Agora, comentários sobre a ação em si. Uma das características da religião é a crença em dogmas, ou seja, verdades absolutas que não podem ser contestadas e que são dadas pelo ente superior de tal religião. Um dos dogmas da Igreja Católica é a crença num único deus. Então, qualquer religião que acredite em mais de uma divindade, como é o caso das tais “religiões afro-brasileiras”, está em desacordo com a verdade absoluta em que os católicos acreditam. Além disso, é importante notar que a Igreja Católica tem outro dogma, o Extra Ecclesiam nulla salus, que diz que não há salvação fora da Igreja Católica, e uma pessoa que não pode ser salva irá para o inferno, e quem manda no inferno é o Dito Cujo.

Ora, se as religiões são baseadas em dogmas, então não há de se falar em discriminação, pois na visão da Igreja Católica, ou mesmo das tais “religiões afro-brasileiras” que o juiz não especifica quais são, qualquer outra religião está em desacordo com a verdade absoluta, assim como qualquer lei que proteja o reconhecimento de tais igrejas, pois aí o Estado estaria patrocinando um ataque ao Bem, ou seja, alinhado-se ao Mal.

Importante notar que a publicização de qualquer pensamento, por mais ofensivo que este pode ser a uma pessoa, não impede a mesma de continuar em sua fé ou ideologia. Existe uma grande diferença em se expressar e impedir alguém de professar sua fé. Desta forma, é perfeitamente legítimo ao padre Abib, ou a qualquer outro sacerdote de outras religiões, fazer críticas aos aspectos ideológicos das outras religiões, para arregimentar mais fiéis para a fé que acredita ser a portadora da verdade absoluta. O que seria bem diferente de o padre Abib estar na frente de uma porta de um local de culto de uma religião qualquer armado com um rifle M-16, ameaçando os fiéis. Aí sim, e somente aí, haveria um crime.

O que esta ação judicial quer, cuja “vítima” é o Centro Espírita Cavaleiros da Luz - Cidade da Luz (como se uma instituição tivesse consciência para poder ser ofendida) e cujo diretor não é novato no uso do Ministério Público para processar interesses católicos, é impedir um ser humano de expressar aquilo que é parte constituinte da sua consciência, impedindo-o de existir, pois uma pessoa que não pode se expressar não existe naquele mundo dos códigos onde ele está inserido.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Carta de deus

María Luisa Alba Bustos

Fonte:
Sociedade da Terra Redonda
http://www.str.com.br/

Prezado e temido Homem Todo-Poderoso:

Me dirijo a você para fazer-lhe chegar uma prece que espero poder ser atendida por sua parte. Certamente você já ouviu falar de mim, sou Deus, esse ser que os seus criaram há muitos, muitíssimos anos, quando apenas a sua espécie se distinguia do resto dos animais. Quando o desconhecimento, o temor, o desejo de proteção e a ignorância fazia-lhes tão vulneráveis como qualquer outro animal.

Criaram-me vocês à sua imagem e semelhança, enfeitado com todos os seus defeitos e virtudes, naqueles tempos primitivos até era divertido ser Deus, quero dizer, deuses, porque eram demasiadas as suas necessidades para criar um só Deus.

Criaram-me, mas criaram-me escravo das suas crenças e necessidades. Imaginaram-me sob distintas formas e atributos. Cada novo crente atava-me, e segue me atando, com as suas correntes exigindo de mim ajuda para aliviar a sua dor e ignorância.

Criaram-me, criaram-nos quando ainda não compreendiam o mundo que lhes rodeia e as leis que o regem. Quando ignoravam que podiam existir leis que regem o mundo e o universo. Por isso me criaram, nos criaram tão disparatados, nos criaram em arranjo a suas próprias fantasias e temores. Tão disparatado como só a mente de uma criança pode criar um ser inventado para que lhe ajude.

A minha história Senhor é muito triste, utilizaram-me como justificativa para todos os excessos e egoísmos próprios da sua espécie.

Utilizaram-me para justificar seus confrontos, para justificar o poder que alguns homens atribuíam para si mesmos, para que uns homens dominassem outros, para impor suas normas e suas crenças dizendo que provinham de mim. Para que uns homens se proclamassem portavozes da minha vontade desqualificando, no meu nome, todos aqueles que não acreditassem nas suas palavras.

Desde o primeiro momento vocês criaram guerras entre nós para justificar seus interesses.

Utilizaram-nos para justificar seus desejos de conquista, para vencer o adversário, para submetê-lo.

Utilizaram-nos para justificar a imensidão de mortos, feridos, torturados que essas guerras geraram e geram.

Utilizaram-nos para justificar seus ódios, sua voracidade, seus desejos de vingança.

Não creio que haja maldade na qual vocês não tenham invocado o meu nome.

Creio Homem, que não houve ocasião na sua história pessoal e coletiva onde não se tenha invocado o meu nome, ou nossos nomes, para defender seus interesses manifestos e ocultos.

No meu nome, nos nossos nomes tem se cometido e seguem se cometendo uma infinidade de carnificinas, crimes e atrocidades que não tem outra justificativa senão seus próprios interesses.

Sob a aparência de seres infinitamente poderosos não somos mais do que escravos das suas crenças, criaram-nos escravos e escravos seguimos, e assim seguiremos enquanto não nos libertarem dessas correntes que a vocês parecem justas, acreditando que nos elogiam e que gostamos.

São as mesmas correntes com que os poderosos da sua espécie atam vocês quando dizem que interpretam a nossa vontade, as nossas palavras e os nossos desejos.

A sua espécie, Homem, tem avançado muito, não tanto como deveria porque em nosso nome também se tem procurado deter o avanço da sua espécie, se tem forjado mentiras imensas, espantosas, horríveis falsidades destinadas a deter o avanço da sua espécie, se tem matado e destruído aqueles homens e obras que abriam brechas nas muralhas da ignorância.

Apesar de tudo avançou o suficiente para que não necessite mais acreditar em seres mágicos criados pela sua imaginação há muito, muitíssimo tempo.

Apesar de tudo sabe hoje que o mundo, o universo rege-se por leis que permanecem ocultas, não por minha vontade, não por nossa vontade.

Ainda falta-lhes muito para descobrir as várias leis que permanecem ocultas, mas sabem que essas leis existem, embora não as conheçam.

Já não tem necessidade de nós, já não tem necessidade de seres mágicos que guiem seus passos na escuridão e na ignorância.

Tomem nas suas mãos as rédeas do seu destino, averigüem as leis que regem tudo e me deixem, nos deixem descansar em paz.

Não me usem para justificar suas ambições, seus desejos, seus interesses, seus excessos ou suas atrocidades. Por isso Homem Todo-Poderoso te dirijo esta carta te rogando que me liberes das tuas correntes, das tuas crenças, da tua ignorância e dos teus medos.

Cada vez que sintas tentação de crer em mim te pergunta quem tem criado quem, se deus ao homem, ou homem à deus?

Por isso Senhor, Homem Todo-Poderoso, te peço, me libera dessa escravidão a que me tens submetido, deixa que me dissolva no nada de onde um dia me criaste, nos criaste, à tua imagem e semelhança.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Almas congeladas

Milton R. Medran Moreira
Procurador de Justiça aposentado e jornalista; presidente da Confederação Espírita Pan-Americana
Artigo publicado no Jornal Zero Hora de Porto Alegre, em 09/04/2008.

Deus fecunda a madrugada para o parto diário do sol, mas nem a madrugada é o sol, nem o sol é a madrugada.
(Do voto do ministro Carlos Ayres Britto, no julgamento da ADI 3.510)

No julgamento em curso no STF da ação direta de inconstitucionalidade da Lei de Biossegurança, entidades religiosas que apoiam o pedido têm feito questão de salientar: os argumentos que as movem não são de ordem religiosa, são científicos. Sustentam - com razão, diga-se de passagem - que o zigoto, biologicamente, já contém todas as informações identificadoras do indivíduo humano a que daria origem, caso a gestação ocorresse. Mas isso não dá resposta a esta fundamental indagação: ali já está presente um ser humano?

Veja-se: retirados que forem de um animal qualquer, humano ou não, uma unha ou um fio de cabelo, estará também ali contido todo o código genético daquele ser. E, no entanto, se poderia atribuir à unha ou ao fio de cabelo a condição humana?

Claramente, os grupos, todos eles identificados com a religião, que se opõem à pesquisa científica com células-tronco embrionárias não o fazem por amor à ciência, mas por respeito à fé. Talvez não tenham sequer coragem de afirmar, mas sua luta nasce da crença de que ali, naquele aglomerado de células humanas, há uma alma. E que essa realidade desloca o tema ao campo da sacralidade, por onde não é lícito ao homem transitar.

Sob o aspecto jurídico positivo, a questão é singela e - tomara! - o voto já proferido pelo ministro Ayres Britto há de ter pavimentado o caminho da decisão final. Cuida-se de definir se ali, naquelas células, há vida humana. A resposta é não. Nosso ordenamento jurídico atribui personalidade humana ao ser nascido com vida. O restante são perquirições, relevantes, sem dúvida, de cunho religioso ou filosófico. Não científicos. E à Corte não caberá firmar a decisão nesse tipo de perquirições que fogem do âmbito da lei.

Mas admitamos - e preferível seria que o fizessem claramente os que pugnam pela procedência da ação - que o móvel do pedido seja exatamente este: o de que ali repousa uma alma humana e que crenças e tradições de um povo devem pesar na decisão. Assim mesmo, é de se considerar que entre nós vigoram, com igual força e respeitável tradição histórica, outras posições acerca dessa substância definida pelas religiões e filosofias como alma ou espírito.

Mesmo que a religião cristã haja, após alguns concílios que lhe deram feição definitiva, fechado questão de que a alma é criada por Deus no momento da concepção, é sabido que nem sempre houve unanimidade na história do cristianismo acerca dessa proposição, feita dogma irremovível, a partir de certo momento. Os chamados padres da Igreja, sob influência platônica, nos primeiros séculos do cristianismo, defenderam abertamente a preexistência do espírito como emanação divina e sua atuação consciente e eficiente no processo da encarnação. Contemporaneamente, no Brasil, milhões de pessoas adotam a crença ou a concepção filosófica da reencarnação, bem mais compatível com os modernos postulados científicos da lei geral da evolução. Esta não influiria tão-somente no campo biológico, mas seria também o dínamo do desenvolvimento consciencial, a partir da hipótese da existência do espírito e de sua independência da matéria.

A partir dessa concepção, moderna e não destoante da ciência, impensável seria imaginar que num conglomerado de células, manipuladas num tubo de ensaio e, após, conservadas por anos em um congelador, repouse uma consciência. Ali ela não poderia ter parado em um processo onde a inteligência voltada a um fim útil e evolucionista haja, de alguma forma, interferido.

Está aí uma reflexão fundamentada numa hipótese viável, filosófica e cientificamente sustentável. Diferente, pois, de um dogma que, para poder influir na formulação das leis e das decisões humanas, precisa se valer de eufemismos que mascaram a velha persistente vontade de que o mundo seja regido pela fé e pelo obscurantismo, em detrimento do progresso e da ciência.

Almas congeladas só podem povoar o mundo mítico de seres que preferem também congelar a fé, mas que não têm o direito de obstaculizar o avanço da ciência. Mormente quando esta contribui para a felicidade humana.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Moral de laico

Francisco J. Laporta
(Catedrático de Filosofia do Direito da Universidad Autónoma de Madrid)
Publicado no jornal espanhol El País em 04/04/2008.

La complicidad de tantos prelados y fieles con el capitalismo más despiadado, las dictaduras más inmundas o los nacionalismos más excluyentes no impiden que culpen de todo a los que no creen en religión alguna.

Empieza a ser irritante el tono de superioridad moral con que muchos de los fieles de cualquier confesión o credo y las jerarquías religiosas que los propagan han dado en mirar a quienes adoptan ante la convivencia civil y la enseñanza una postura agnóstica y laica. Ahora insisten en ello las autoridades católicas, con Joseph Ratzinger a la cabeza y los obispos españoles haciendo de coro repetitivo de sus manidas orientaciones morales. Igual que los de cualquier otra antigualla religiosa, vuelven los católicos a la cantinela de que la familiaridad con la ética y las exigencias de la moral son una prerrogativa de los creyentes de la que probablemente carecen aquellos que no comulgan con fe religiosa alguna.

Resulta asombroso contemplar cómo se ignora la evidencia de que una parte no menor de los grandes desastres morales de que hemos sido testigos durante años y años se ha producido en nombre de creencias religiosas o ha sido provocado y alentado por quienes decían obedecer tales convicciones. Y no menos sorprendente es admirar -porque es, en efecto, algo tan paradójico que es casi admirable- la facilidad con la que esos credos se armonizan con prácticas políticas y económicas de las que sabemos con toda certeza que -ésas sí- son la causa del dolor, la pobreza y el sufrimiento de millones de seres humanos, es decir, de la gran inmoralidad contemporánea.

La complicidad de tantos prelados y fieles con la apoteosis del libre mercado, las dictaduras más inmundas o los nacionalismos más excluyentes son ejemplos bochornosos de esa paradoja. Y sin embargo los únicos que parecen responsables, los únicos a quienes se reputa de inmorales, son los que han renunciado a guiar su vida o su conciencia civil por creencias de esa naturaleza. Ante tal argumento perverso me propongo reivindicar la superioridad moral del laico sobre el creyente.

Con esta nueva monserga integrista se nos quieren escamotear de nuevo más de dos siglos de pensamiento. Por poner un nombre: en 1793 empezaba Kant su prólogo a la primera edición de La religión dentro de los límites de la mera razón con una afirmación que, digan lo que digan, es ya incontrovertible: "La moral no necesita de la idea de otro ser por encima del hombre para conocer el deber propio ni de otro motivo impulsor que la ley misma para observarlo". Para decirlo claro: la moral no necesita de la religión; se basta a sí misma, sin esa clase de andaderas, porque tiene un sustento suficiente en la racionalidad humana. Este elemental punto de partida sirve para definir lo que puede ser la moral de un laico frente a esa otra moral necesariamente débil y vicaria que es la moral del creyente.

Lo que triunfa con el impulso ético ilustrado, la tolerancia religiosa, y la separación Iglesia-Estado, es la idea de la esencial igualdad moral de los seres humanos al margen de sus convicciones religiosas; la idea de que no es la religión lo que confiere su calidad moral a las personas, sino una condición anterior que no es moralmente lícito ignorar en nombre de religión alguna y que no debe ceder ante consideraciones de carácter religioso. Esa igualdad constituye el núcleo de la ética contemporánea, y con ella también de toda política justa, porque exige del poder que no haga distinciones en la estatura moral de sus ciudadanos.

Y esa idea de dignidad humana que sustenta todo el edificio de la moralidad laica se funde con la noción de autonomía de la persona como capacidad de conformar en libertad y a partir de sí las convicciones morales y los principios que han de presidir el proyecto personal de su vida. A esto, algún documento episcopal reciente lo ha llamado "deseo ilusorio y blasfemo" de dirigir la vida propia y la vida social, mostrando así de nuevo que, aunque se condimenten ahora con la salsa fría del libre mercado, ser católico y ser liberal siguen siendo dos menús incompatibles.

Pues bien, esa dignidad de ser moralmente autónomo se le confiere a toda persona humana en condiciones de plena igualdad, de forma que si es una blasfemia, es la blasfemia que sustenta todo ese pensamiento ético, y se expresa en ciertas exigencias morales que el pensamiento religioso, de cualquier clase que sea, dista de haber asimilado bien. La religión y su sedimento moral han ido siempre detrás de esas conquistas éticas, y generalmente en contra de ellas. Incluso la idea de derechos humanos, corolario directo de ellas, fue negada y perseguida sañudamente por la jerarquía católica hasta bien entrado el siglo XX. Nuestros obispos saben que pueden presentarse abundantes textos papales que tratan a tales derechos de errores morales absolutos. Por no mencionar algo que pervive aún en casi toda moralidad religiosa: la posición de la mujer en un plano subalterno que le niega el acceso a la jerarquía y la gestión del misterio.

Los obispos españoles sólo siguen la estela de ciertos lugares comunes muy cultivados por Joseph Ratzinger, al que no puedo llamar "pontífice", o hacedor de puentes, porque, como su antecesor, parece más bien empeñado en destruir los pocos y débiles que penosamente se habían ido levantando. En su doctrina moral exhibe una terca insistencia en las perversiones del "relativismo" como causa próxima de todos los males contemporáneos. Y a veces equipara subliminalmente laicismo y relativismo, deslizando con ello la idea de que una cosa lleva necesariamente a la otra. Pero esto es sencillamente falso.

La moral de los laicos puede ser tan firme como cualquiera y tiende además a ser menos acomodaticia que la moral del creyente. La ética religiosa que pende de los designios de la divinidad (o de sus intérpretes terrenales, que parecen aún más antojadizos) tiene justamente problemas de relativismo que conocemos al menos desde Platón. Cuando, en diálogo con Eutifrón, Sócrates le pregunta si lo bueno es querido por los dioses porque es bueno o es bueno porque es querido por los dioses, el problema de la moralidad religiosa está servido. Si lo primero, entonces la voluntad de los dioses no muestra por qué es bueno; para descubrirlo tendremos que pensar como laicos. Si lo segundo -es decir, que sea bueno sólo porque así lo quieran los dioses- condena a la ética religiosa a un desconsolador relativismo: las cosas serán o no serán buenas según se les antoje a los dioses. La moralidad será, pues, relativa a la voluntad de los dioses (o, como sucede de hecho, a las cambiantes voces de sus supuestos representantes en la tierra). No cabe por ello en esta ética aquello que define a una conciencia moral madura: poder alzar la voz ante cualquier dios para decirle que sus designios son injustos. Sólo una convicción moral que no sujete sus máximas a los dictados de un "ser por encima del hombre", es decir, sólo una convicción moral laica, es capaz de eso.

El relativismo de la moral religiosa se acentúa, además, muchas veces al añadirle otros ingredientes todavía más vacíos y mudables. Las viejas religiones apelan tercamente a la tradición para sostener la vigencia de sus ideas morales y justificar la protección pública. Pero cada tradición justifica una moralidad diferente, y, si hemos de ser consecuentes, todas ellas serían sólo por ello válidas. ¿No es esto el núcleo mismo de la ética relativista?

Por no mencionar algo que no podemos olvidar fácilmente, y menos en España: que con desdichada frecuencia los creyentes se han aliado y se alían con ideales nacionalistas y patrioteros, o, como en el Oriente Próximo, se obcecan con la quimera de un territorio sagrado como receptáculo de su vida moral como pueblo. La cantidad de maldad y de sangre que han producido esas apuestas morales relativistas sustentadas en tradiciones y credos nacionales no necesita ser recordada entre nosotros. Frente a ellas es preciso afirmar la igual dignidad moral de todos los seres humanos, la perentoriedad del respeto a sus derechos básicos y la universalidad de sus exigencias ante cualquier ética casera o fideísta. O, lo que es lo mismo, es preciso vindicar nuevamente la calidad moral del pensamiento laico.

sexta-feira, 28 de março de 2008

Deus

André Comte-Sponville
(Nasceu em Paris, em 1952, é professor-doutor da Université Paris I)
COMTE-SPONVILLE, André. Apresentação da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2002. pg.77-87.

Crer num deus significa ver que a vida tem um sentidoLudwig Wittgenstein

Não sabemos se Deus existe. É por isso que se coloca a questão de crer em Deus ou não.

“Limitar o saber”, dizia Kant, “para abrir espaço para a fé.” Mas é que o saber é limitado de fato: não apenas porque nunca conheceremos tudo, é claro, mas porque o essencial sempre nos escapa. Ignoramos tanto as causas primeiras como os fins. Por que há alguma coisa em vez de nada? Não sabemos. Nunca saberemos. Por quê (com que fim)? Também não sabemos, nem sequer se há um fim. Mas se é verdade que nada nasce de nada, a simples existência de alguma coisa - o mundo, o universo - parece implicar que sempre houve alguma coisa: que o ser é eterno, incriado, talvez criador, e é o que alguns chamam de Deus.

Existiria desde sempre? Ou antes, fora do tempo, criando a este como cria todas as coisas? Que fazia Deus antes da criação? Não fazia nada, responde santo Agostinho, mas é que na verdade não havia antes (já que todo “antes” supõe o tempo): havia só o “perpétuo hoje” de Deus, que não é um dia (que sol para medi-lo, se todo sol dele depende?), nem uma noite, mas que precede e contém cada dia, cada noite que vivemos, que viveremos, como também todos e todas que, incontáveis, ninguém viveu. Não é a eternidade que é no tempo; o tempo é que é na eternidade. Não é Deus que é no universo; o universo é que é em Deus. Acreditar nisso? Parece o mínimo. Nada, sem esse ser absolutamente necessário, teria razão de existir. Como ele não existiria?

Deus está fora do mundo, como sua causa e seu fim. Tudo vem dele, tudo está nele (“é nele que temos o ser, o movimento e a vida”, dizia São Paulo), tudo tende a ele. Ele é o alfa e o ômega do ser: o Ser absoluto - absolutamente infinito, absolutamente perfeito, absolutamente real - sem o qual nada de relativo poderia existir. Por que existe alguma coisa em vez de nada? Porque Deus.

Dirão que isso não suprime a questão (por que Deus em vez de nada?), o que é verdade. Mas Deus seria esse Ser que responde - ele mesmo, por si mesmo, em si mesmo - a questão da sua própria existência. Ele é causa de si, como dizem os filósofos, e esse mistério (como um ser pode causar a si mesmo?) faz parte da definição. “Entendo por causa de si aquilo cuja essência envolve a existência”, escreve Spinoza, “em outras palavras, aquilo cuja natureza não pode ser concebida a não ser como existente.” Isso só vale para Deus: isso é Deus mesmo. Pelo menos o Deus dos filósofos. “Como Deus entra na filosofia?”, pergunta-se Heidegger. Como causa de si responde: “O ser do ente, no sentido do fundamento, só pode ser concebido como causa sui. Isso é nomear o conceito metafísico de Deus.” A esse Deus, acrescenta Heidegger, “o homem não pode nem rogar nem sacrificar.” Mas nenhuma prece, nenhum sacrifício, sem ele, seria filosoficamente pensável. O que é Deus? É o ser absolutamente necessário (causa de si), absolutamente criador (causa de tudo). absolutamente absoluto (não depende de nada, tudo depende dele): é o Ser dos seres, e o fundamento de todos.

Ele existe? Existe por definição, sem que, no entanto, possamos tomar sua definição como prova.

É o que há de fascinante e, ao mesmo tempo, de irritante na famosa prova ontológica que perpassa - pelo menos de santo Anselmo a Hegel - toda a filosofia ocidental. Como definir Deus? Como o ser supremo (santo Anselmo: “o ser tal que nada maior pode ser pensado”), o ser soberanamente perfeito (Descartes), o ser absolutamente infinito (Spinoza, Hegel). Ora, se ele não existisse, não seria nem o maior nem realmente infinito - e alguma coisa faltaria, é o mínimo que se pode dizer, à sua perfeição. Ele existe, pois, por definição: pensar Deus (concebê-lo como supremo, perfeito, infinito...) é pensá-lo como existente. “A existência não pode ser separada da essência de Deus” escreve Descartes, “do mesmo modo que, da essência de um triângulo retilíneo, a grandeza de seus três ângulos iguais a dois ângulos retos, ou da idéia de uma montanha, a idéia de um vale; de sorte que não há menos repugnância em conceber um Deus (isto é, um ser soberanamente perfeito) a que falte a existência (isto é, a que falte a perfeição) do que em conceber uma montanha que não tenha vale.” Dirão que isso não prova que montanhas e vales existem... Certamente, responde Descartes, mas sim que montanhas e vales não podem se separar umas dos outros. O mesmo ocorre, tratando-se de Deus: sua existência é inseparável da sua essência, inseparável dele, portanto, e é por isso que ele existe necessariamente. O conceito de Deus, escreverá Hegel, “inclui nele o ser”: Deus é o único ser que existe por essência.

Está claro que essa prova ontológica não prova nada, senão todos seríamos crentes, o que a experiência basta para desmentir, ou idiotas, o que ela não basta para atestar. Aliás, como uma definição poderia provar o que quer que seja? Seria o mesmo que pretender enriquecer definindo a riqueza... Cem francos reais não contêm nada mais que cem francos possíveis, nota Kant; mas sou mais rico com cem francos reais “do que com seu simples conceito ou possibilidade”. Não basta definir uma soma para possuí-la. Não basta definir Deus para prová-lo. Aliás, como poderíamos demonstrar por conceitos uma existência? O mundo, parece, é um argumento melhor (não mais a priori mas a posteriori, e é isso que a prova cosmológica significa.

De que se trata? Da aplicação do princípio de razão suficiente ao próprio mundo. “Nenhum fato”, escreve Leibniz, “poderia ser verdadeiro ou existente, nenhuma enunciação poderia ser verdadeira, sem que houvesse uma razão suficiente para que seja assim e não de outro modo.” Equivale a dizer que tudo o que existe deve poder, pelo menos de direito, ser explicado - mesmo que fôssemos incapazes de fazê-lo. Ora, o mundo existe, mas sem poder se explicar (ele é contingente: poderia não existir). Portanto, para explicar sua existência, é preciso lhe supor uma causa. Mas se essa causa também fosse contingente, deveria por sua vez ser explicada por outra, e assim infinitamente, de tal modo que a serie inteira das causas - logo, o mundo - pareceria inexplicada. Assim, para explicar o conjunto dos seres contingentes (o mundo), é necessário supor um ser absolutamente necessário (Deus). “A última razão das coisas”, continua Leibniz, “deve estar numa substância necessária, na qual o detalhe das mudanças só exista eminentemente, como na fonte; é a isso que chamamos Deus.” Para dizer com outras palavras: Se o mundo, então Deus; ou: o mundo, logo Deus.

Essa prova a contingentia mundi (pela contingência do mundo), tal como Leibniz a formula (mas também era o argumento de Tomás de Aquino e, já, em certo sentido, de Aristóteles), é a meus olhos o argumento mais forte, o mais perturbador, o único que às vezes me faz vacilar. A contingência é um abismo em que perdemos o pé. Como seria ele sem fundo, sem causa, sem razão?

A prova cosmológica vale, porém, tanto quanto o princípio de razão. Ora, como um princípio, nesses domínios, poderia provar o que quer que seja? Querer provar Deus pela contingência do mundo continua sendo passar de um conceito (o de causa necessária) a uma existência (a de Deus), e é por isso que, como observava Kant, essa prova cosmológica se reduz, na verdade, à prova ontológica. Por que nossa razão seria a norma do ser? Como teríamos certeza absoluta do seu valor, do seu alcance, da sua confiabilidade? Somente um Deus poderia garanti-las. É o que impede de demonstrar racionalmente que ele existe: já que, para garantir a verdade dos nossos raciocínios, seria necessário pressupor a existência desse mesmo Deus, que se trata de demonstrar. Só escapamos do abismo para cair num círculo: é passar de uma aporia a outra.

Sobretudo, essa prova cosmológica só provaria, no melhor dos casos, a existência de um ser necessário. Mas o que nos garante que esse ser é, no sentido ordinário do termo, um Deus? Poderia ser a Natureza, como queria Spinoza, em outras palavras, um ser eterno e infinito, claro, mas sem nenhuma subjetividade ou personalidade: um ser sem consciência, sem vontade, sem amor, e ninguém veria nele um Deus aceitável. De que adianta rogar a ele, se ele não nos escuta? De que adianta obedecer, se ele não nos pede nada? De que adianta amá-lo, se ele não nos ama?

Donde, talvez, a terceira das grandes provas tradicionais da existência de Deus: a prova físico-teológica, que eu preferiria chamar de prova físico-teleológica (do grego telos: o fim, a finalidade). O mundo seria ordenado demais, harmonioso demais, evidentemente finalizado demais, para que se possa explicá-lo sem supor, na sua origem, uma inteligência benevolente e organizadora. Como o acaso poderia fabricar um mundo tão bonito? Como poderia explicar o aparecimento da vida, sua incrível complexidade, sua evidente teleonomia? Se encontrassem um relógio num planeta qualquer ninguém poderia acreditar que ele se explicasse unicamente pelas leis da natureza: qualquer um veria nele o resultado de uma ação inteligente e deliberada. Ora, qualquer ser vivo é infinitamente mais complexo do que o relógio mais sofisticado. Como é que o acaso, que não poderia explicar este, explicaria aquele?

Os cientistas responderão, quem sabe, um dia. Mas desde já é impressionante constatar que esse argumento que foi por muito tempo o mais popular, o mais imediatamente convincente (já era o argumento de Cícero, será o de Voltaire e o de Rousseau), perdeu, hoje, boa parte da sua evidência. É que a harmonia se fende - quantos acasos no universo, quantos horrores no mundo! - e o que dela resta se explica cada vez melhor (pelas leis da natureza, pelo acaso e a necessidade, pela evolução e a seleção das espécies, pela racionalidade imanente de tudo...). Não há relógio sem relojoeiro, diziam Voltaire e Rousseau. Mas que relógio ruim o que contém terremotos, furacões secas, animais carnívoros, um sem-número de doenças - e o homem! A natureza é cruel, injusta, indiferente. Como ver nela a mão de Deus? É o que se chama, tradicionalmente, o problema do mal. Fazer dele um mistério, como faz a maioria dos crentes, é reconhecer-se incapaz de resolvê-lo. A prova fisico-teológica fica, por conseguinte, amputada do essencial do seu alcance. Sofrimentos demais (e muito antes da existência da humanidade: os bichos também sofrem), carnificinas demais, injustiças demais. A vida é uma maravilha de organização? Sem dúvida. Mas também um acúmulo aterrador de tragédias e de horrores. Milhões de espécies animais se alimentando com milhões de outras criam, para a biosfera, uma espécie de equilíbrio. Mas à custa, para os viventes, de quantas atrocidades? Os mais aptos sobrevivem; os outros desaparecem. Isso realiza, para as espécies, uma sorte de seleção. Mas à custa, para os indivíduos, de quantas dores e injustiças? A história natural não é nem um pouco edificante. A história humana também não. Que Deus após Darwin? Que Deus após Auschwitz?

A prova ontológica, a prova cosmológica, a prova físico-teológica... São as três grandes “provas” tradicionais da existência de Deus, que eu não podia deixar de evocar neste capítulo. No entanto forçoso é reconhecer que elas não provam nada, como Kant mostrou suficientemente, e como Pascal, antes dele, reconhecera. Isso não impedia esses dois gênios de acreditar em Deus, ou antes, é o que fazia da crença deles o que ela é: uma fé, não um saber; uma graça ou uma esperança, não um teorema. Eles acreditavam ainda mais em Deus por terem renunciado a demonstrar sua existência. Sua fé era tanto mais viva, relativamente, por se saber objetivamente inverificável.

Hoje é a regra geral. Não conheço filósofos contemporâneos que se interessem por essas provas por motivos que não sejam históricos, nem crentes que se fiem nelas. Provas? Se houvesse, para que a fé? Um Deus que se poderia demonstrar seria um Deus?

Isso não impede de refletir sobre elas, de examinar essas provas, nem de inventar outras. Poderíamos, por exemplo, conceber outra prova puramente panteísta (do grego to pan: o tudo) da existência de Deus. Chamemos Deus ao conjunto de tudo o que existe: ele existe, portanto, mais uma vez, por definição (o conjunto de tudo o que existe, existe necessariamente). E daí, se isso não nos diz nem o que ele é nem o que ele vale? O universo só faria um Deus plausível se pelo menos ele pudesse acreditar nesse Deus. É o que acontece? “Deus é a consciência de si do Todo”, diz meu amigo Marc Wetzel. Pode ser. Mas o que nos prova que o Todo tem uma consciência?

Todas essas provas têm em comum provar ao mesmo tempo demais e muito pouco. Mesmo que demonstrassem a existência de algo necessário, absoluto, eterno, infinito, etc., fracassariam em provar que esse algo é um Deus, no sentido em que o entendem a maioria das religiões: não apenas um ser mas uma pessoa, não apenas uma realidade mas um sujeito, não apenas algo mas alguém - não apenas um Princípio mas um Pai.

É também essa a fraqueza do deísmo, que é uma fé sem culto e sem dogmas. “Creio em Deus”, escreve-me uma leitora, “mas não no Deus das religiões, que são humanas e nada mais. O verdadeiro Deus é desconhecido...” Muito bem. Mas se não o conhecemos, como saber que é Deus?

Crer em Deus supõe conhecê-lo, pelo menos um pouco, o que só é possível por razão, revelação ou graça. Mas a razão, cada vez mais, se confessa incompetente. Restam pois a revelação e a graça: resta portanto a religião... Qual? Pouco importa aqui, já que a filosofia não tem nenhum meio de arbitrar entre elas. O Deus dos filósofos importa menos, para a maioria de nós, que o Deus dos profetas, dos místicos ou dos crentes. Pascal e Kierkegaard, melhor que Descartes ou Leibniz, disseram o essencial: Deus é objeto de fé, mais que de pensamento, ou antes, ele não é objeto nenhum mas sujeito, absolutamente sujeito, e só se oferece no encontro ou no amor. Pascal, numa noite de fogo, acreditou experimentá-lo: “Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó, não dos filósofos e dos sábios. Certeza, sentimento, alegria, paz. Deus de Jesus Cristo... Alegria, alegria, alegria, prantos de alegria.” Isso não é uma demonstração. Mas nenhuma demonstração, sem essa experiência, bastaria para a fé.

É aí, talvez, que a filosofia se detém. Para que demonstrar o que se encontra? Como provar o que não se encontra? O ser não é um predicado, Kant tem razão nesse ponto, e é por isso que, já dizia Hume, não é possível nem demonstrar nem refutar uma existência. O ser é mais constatável do que demonstrável; ele se submete à prova e dele não se dá prova.

Dirão que a experiência prova. Que nada, porque, neste caso, ela não é nem reiterável, nem verificável, nem mensurável, nem mesmo absolutamente comunicável... A experiência não prova nada, já que há experiências falsas ou ilusórias. Uma visão? Um êxtase? As drogas também os proporcionam. E o que prova uma droga? Quem vê Deus, como saber se vê ou se alucina? Quem o ouve, como saber se o escuta ou se o faz falar? Quem sente sua presença, seu amor, sua graça, como saber se os percebe ou fantasia? Não conheço crente que tenha mais certeza na verdade da sua fé do que tenho na dos meus sonhos, quando durmo. Basta dizer que uma certeza, na medida em que permanece puramente subjetiva, não prova nada. É o que se chama fé: “uma crença que só subjetivamente é suficiente”, escreve Kant, e que por isso não pode ser imposta - nem teórica nem praticamente - a ninguém.

Em outras palavras, Deus é menos um conceito que um mistério, menos um fato que uma questão, menos uma experiência que uma aposta, menos um pensamento que uma esperança. Ele é o que convém supor para escapar do desespero (é essa a função, em Kant, dos postulados da razão prática), e é por isso que a esperança, tanto quanto a fé, é uma virtude teologal - porque ela tem Deus mesmo como objeto. “O contrário de desesperar é crer”, escreve Kierkegaard: Deus é o único ser capaz de satisfazer absolutamente nossa esperança.

Que isso, mais uma vez, não prova nada, é o que cumpre reconhecer, para terminar: a esperança não é um argumento, pois, como dizia Renan, é possível que a verdade seja triste. Mas que valem os argumentos que não deixam nada a esperar?

O que esperamos? Que o amor seja mais forte que a morte, como diz o Cântico dos cânticos, mais forte que o ódio, mais forte que a violência, mais forte que tudo, e só isso seria Deus, verdadeiramente: o amor onipotente, o amor que salva, e o único Deus absolutamente amável - porque seria absolutamente amante. É o Deus dos santos e dos místicos: “Deus é amor”, escreve Bergson, “e é objeto de amor: toda a contribuição do misticismo está aí. Desse duplo amor o místico nunca terminará de falar. Sua descrição é interminável, porque a coisa a descrever é inexprimível. Mas o que ela diz claramente é que o amor divino não é algo de Deus: é Deus mesmo.”

Objetarão que esse Deus é menos uma verdade (o objeto de um conhecimento) que um valor (o objeto de um desejo). Sem dúvida. Mas acreditar nele é acreditar que esse valor supremo (o amor) também é a verdade suprema (Deus). Isso não pode ser demonstrado. Isso não pode ser refutado. Mas isso pode ser pensado, esperado, acreditado. Deus é a verdade que constitui norma - a conjunção do Verdadeiro e do Bem -, e a norma, a esse título, de todas as verdades. O desejável e o inteligível, nesse nível supremo, são idênticos, explicava Aristóteles, e é essa identidade, se é que ela existe, que é Deus. Como dizer melhor que somente ele poderia nos saciar ou nos consolar absolutamente? “Somente um Deus poderia nos salvar”, reconhecia Heidegger. Portanto, é crer nele ou renunciar à salvação.

É por isso que Deus faz sentido, notemos para concluir, e proporciona sentido: primeiro porque todo sentido, sem ele, vem se chocar contra a insensatez da morte; depois porque só existe sentido para um sujeito e, por conseguinte, só existe sentido absoluto para um sujeito absoluto. Deus é o sentido do sentido, e o contrário, por isso, do absurdo ou do desespero.

Deus existe? Não podemos saber. Deus seria a resposta à questão do ser, à questão do verdadeiro, à questão do bem, e essas três respostas - ou essas três pessoas... - não seriam mais que uma.

Mas o ser não responde: é o que chamamos de mundo.
Mas o verdadeiro não responde: é o que chamamos de pensamento.
O bem? Ele ainda não responde, e é o que chamamos de esperança.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Da impossibilidade de uma prova cosmológica da existência de Deus

Immanuel Kant
Crítica da razão pura
Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão
Edição: Fundação Calouste Gulbenkian, 5. ed, Lisboa, 2001.

Pretender extrair de uma idéia, traçada com total arbitrariedade, a própria existência do objeto correspondente, era totalmente contrário à natureza e uma pura inovação do espírito escolástico. Com efeito, nunca se teria tentado esta via, se a razão não tivesse previamente sentido a necessidade de admitir algo necessário para a existência em geral (onde se pudesse parar na ascensão) e se, pelo fato desta necessidade ter de ser incondicionada e certa a priori, a razão não fosse obrigada a procurar um conceito que, na medida do possível, satisfizesse uma tal exigência e desse a conhecer uma existência, completamente a priori. Julgou-se encontrar esse conceito na idéia de um Ser realíssimo e, se foiutilizada esta idéia, foi somente para obter um conhecimento mais determinado de uma coisa de que já se estava, aliás, convencido ou persuadido que devia existir, ou seja, do ser necessário. Contudo, dissimulou-se este curso natural da razão e, em vez de terminar neste conceito, tentou-se começar por ele, para dele derivar a necessidade da existência que ele se destinava unicamente a completar. Daí surgiu a malograda prova ontológica, que nada tem de satisfatório, nem para o são entendimento natural, nem para sustentar um exame científico.

A prova cosmológica, que vamos agora examinar, mantém a ligação da necessidade absoluta com a realidade suprema; mas, em vez de partir, como a precedente, da realidade suprema, para deduzir a necessidade na existência, conclui da necessidade incondicionada e previamente dada, de qualquer ser, a sua realidade ilimitada e, deste modo, tudo encaminha por um raciocínio, não sei se racional se sofístico, mas que é, pelo menos, natural e que possui a maior força persuasiva, não só para o entendimento comum, mas também para o entendimento especulativo; e desta maneira traça visivelmente as primeiras linhas diretrizes de todos os argumentos da teologia natural, linhas que sempre foram seguidas e hão de sê-lo sempre, por muito que_ se adornem e disfarcem sob floreados e arrebiques. Esta prova, a que Leibniz deu também o nome de prova a contingentia mundi, é a que vamos agora expor e submeter a exame.

Formula-se assim: se algo existe deve existir também um ser absolutamente necessário. Ora, pelo menos, existo eu próprio; logo, existe um ser absolutamente necessário. A premissa menor contém uma experiência e a maior infere de uma experiência em geral a existência do necessário*. A prova parte, pois, da experiência; não é, por conseguinte, conduzida totalmente a priori ou ontologicamente; e, porque o objeto de toda a experiência possível se chama mundo, denomina-se prova cosmológica. Como também abstrai de todas as propriedades particulares dos objetos da experiência, pelas quais este mundo se distingue de qualquer outro mundo possível, distingue-se já, na sua designação, da prova físicoteológica, que utiliza, como argumentos, observações acerca da constituição particular . deste nosso mundo dos sentidos.

Mas a prova prossegue e conclui que o ser necessário só pode ser determinado de uma única maneira, isto é, só mediante um dos predicados de entre todos os predicados opostos possíveis e, por conseguinte, deverá ser integralmente determinado pelo seu conceito. Ora, só pode haver um único conceito de coisa que determine integralmente a priori esta coisa, ou seja, o conceito de ens realissimum; portanto, o conceito do ser soberanamente real é o único pelo qual pode ser pensado um ser necessário, isto é, existe necessariamente um Ser supremo.

Neste argumento cosmológico reúnem-se tantos princípios sofísticos, que a razão especulativa parece ter aqui desenvolvido toda a sua arte dialética a fim de produzir a máxima aparência transcendental possível. Vamos, no entanto, afastar por um momento o seu exame, para só pôr em evidência o artifício pelo qual apresenta, disfarçado de novo, um velho argumento, invocando o acordo de dois testemunhos, dos quais um é o da razão pura e o outro o de confirmação empírica, quando afinal é só o primeiro que muda o trajo e a voz para ser tomado pelo segundo. Para bem assegurar o seu fundamento esta prova estriba-se na experiência, dando assim a impressão de se distinguir da prova ontológica, que deposita toda a confiança em meros conceitos puros a priori. Mas a prova cosmológica só se serve desta experiência para dar um único passo, a saber, para se elevar à existência de um ser necessário em geral. O fundamento empírico da prova nada nos pode ensinar acerca dos atributos deste ser; então a razão afasta-se dele inteiramente e, por detrás de simples conceitos, investiga os atributos que um ser absolutamente necessário em geral deve possuir; ou seja, um ser que, entre todas as coisas possíveis, encerra as condições requeridas (requisita) para uma necessidade absoluta. Julga então encontrar estes requisitos unicamente no conceito de um ser soberanamente real e logo conclui: é este o ser absolutamente necessário. Mas, é claro, pressupõe-se aqui que o conceito de um ser dotado da realidade suprema satisfaz plenamente o conceito da necessidade absoluta na existência, ou seja, que este se conclui daquele; eis uma proposição, sustentada pelo argumento ontológico, que assim se admite e se dá por fundamento ao argumento cosmológico, o que afinal se pretendera evitar. Com efeito, a necessidade absoluta é uma existência extraída de simples conceitos. Se digo, então, que o conceito de ens realissimum é um desses conceitos e o único que é conforme e adequado à existência necessária, também tenho que concordar que esta se poderia inferir dele. Portanto, na chamada prova cosmológica, só a prova ontológica a partir de puros conceitos contém propriamente toda a força demonstrativa e a suposta experiência é totalmente inútil, servindo talvez somente para nos conduzir ao conceito de necessidade absoluta, mas não para nos mostrar essa necessidade em qualquer coisa determinada. Com efeito, sendo esta a nossa intenção, temos de abandonar toda a experiência e procurar entre conceitos puros qual deles contém as condições da possibilidade de um ser absolutamente necessário. Mas, deste modo, basta compreender-se a possibilidade de tal ser, para logo se demonstrar a sua existência; o mesmo é dizer que entre todo o possível há um ser que tem implícita a necessidade absoluta, isto é, que este ser existe de modo absolutamente necessário.

Tudo o que há de falacioso no raciocínio descobre-se muito facilmente, reduzindo os seus argumentos à forma escolástica. É o que vamos fazer.

Se é certa a proposição: Todo o ser absolutamente necessário é, ao mesmo tempo, soberanamente real (o que é o nervus probandi da prova cosmológica), deverá poder converter-se, como todos os juízos afirmativos, pelo menos per accidens; portanto: Alguns seres soberanamente reais são, ao mesmo tempo, seres absolutamente necessários. Ora um ens realissimum, não se distingue de outro ens realissimum em coisa alguma e o que vale em relação a alguns seres, englobados neste conceito, vale também em relação a todos. Por conseguinte, também (neste caso) poderei converter absolutamente a proposição, dizendo: Todo o ser soberanamente real é um ser necessário. Como esta proposição é determinada a priori unicamente pelos seus conceitos, o simples conceito de ser soberanamente real tem de conter, implicitamente, a necessidade absoluta desse ser. É o que a prova ontológica afirmava e a cosmológica não queria admitir, muito embora seja o fundamento das suas conclusões, se bem que de uma maneira oculta.

Assim, pois, a segunda via que segue a razão especulativa para demonstrar a existência do Ser supremo não só é tão enganadora como a primeira, mas, além disso, incorre no erro de cometer uma ignoratio elenchi, prometendo levar-nos por outro caminho e fazendo-nos regressar, após pequeno rodeio, ao antigo, que por sua causa abandonáramos.

Ainda há pouco disse que neste argumento cosmológico se ocultava todo um ninho de pretensões dialéticas, que a crítica transcendental facilmente pode descobrir e destruir. Vou limitar-me a citá-las, por agora, e deixo ao leitor já exercitado a tarefa de investigar e anular esses princípios ilusórios.

Aí se encontra por exemplo: 1. o princípio transcendental que do contingente nos faz inferir uma causa, princípio que só tem significado no mundo sensível, mas que já não tem sentido fora desse mundo. Com efeito, o conceito puramente intelectual do contingente não pode produzir nenhuma proposição sintética como a da causalidade, e o princípio desta só no mundo sensível encontra significação e critério para a sua aplicação; aqui, porém, deveria precisamente servir para sair do mundo sensível. 2. O raciocínio que consiste em concluir, da impossibilidade de uma série infinita de causas sobrepostas dadas no mundo sensível, uma causa primeira; o que nem os princípios do uso da razão autorizam na própria experiência, quanto mais tornar extensivo este princípio para além dela (até onde esta cadeia não pode prolongar-se). 3. A falsa satisfação da razão consigo mesma em relação ao acabamento desta série, em virtude de pôr enfim de lado toda a condição, sem a qual todavia não pode ter lugar nenhum conceito de necessidade; como então nada mais se pode compreender, considera-se isto como o acabamento do seu conceito. 4. A confusão da possibilidade lógica de um conceito de toda a realidade reunida (sem contradição interna) com a possibilidade transcendental; ora esta última, para operar uma síntese desse gênero, requer um princípio que, por sua vez, só pode aplicar-se no campo das experiências possíveis, etc.

O artifício da prova cosmológica tem a finalidade única de evitar a prova que pretende demonstrar a priori a existência de um ser necessário, mediante simples conceitos, prova que deve-ria ser estabelecida ontologicamente, coisa de que nos sentimos completamente incapazes. Com essa intenção concluímos, tanto quanto é possível, de uma existência real que se põe como fundamento (de uma experiência em geral), uma condição absolutamente necessária dessa existência. Não temos, pois, necessidade de explicar a sua possibilidade. Pois, se está provado que ela existe, é inútil o problema da sua possibilidade. Se queremos agora determinar, de uma maneira mais precisa, na sua essência, este ser necessário, não procuramos aquilo que é suficiente para compreender, pelo seu conceito, a necessidade da existência; pois que se pudéssemos fazê-lo não teríamos necessidade de nenhum pressuposto empírico; não, nós procuramos apenas a condição negativa (conditio sine qua non) sem a qual um ser não seria absolutamente necessário. Ora, isto seria viável em qualquer espécie de raciocínios que remontam de uma conseqüência dada ao seu princípio; porém, aqui, infelizmente, a condição que se exige para a necessidade absoluta só pode ser encontrada num ser único que, por conseguinte, deveria conter no seu conceito tudo o que se requer para a necessidade absoluta e que, portanto, possibilita uma conclusão a priori de esta necessidade; isto é, deveria também poder concluir-se, reciprocamente, que a coisa, à qual este conceito (da realidade suprema) convém, é absolutamente necessária, e se não posso concluir assim (o que terei de confessar, se quiser evitar a prova ontológica), esta nova via é também um malogro e novamente me encontro no ponto de onde parti. O conceito do Ser supremo satisfaz, certamente, a priori, todas as questões que se podem pôr quanto às determinações internas de uma coisa e é, também, por esse motivo, um ideal ímpar, porque o conceito geral o designa, ao mesmo tempo, como um indivíduo entre todas as coisas possíveis. Mas não satisfaz à questão que se refere à sua própria existência, que era afinal a única que importava; e a quem tenha admitido a existência de um ser necessário e só pretenda saber qual dentre todas as coisas deverá ser considerada como tal, não se lhe poderá responder: eis aqui o ser necessário.

Bem pode ser permitido admitir a existência de um ser soberanamente suficiente como causa de todos os efeitos possíveis, para facilitar à razão a unidade dos princípios explicativos que procura. Porém, chegar ao extremo de dizer que tal ser existe necessariamente, não é já a modesta expressão de uma hipótese permitida, mas a pretensão orgulhosa de uma certeza apodítica; porque o conhecimento do que se afirma como absolutamente necessário deve também comportar uma absoluta necessidade.

Todo o problema do ideal transcendental consiste em encontrar para a necessidade absoluta um conceito ou para o conceito de uma coisa a absoluta necessidade dessa coisa. Se um dos casos for possível também o outro deverá sê-lo, pois que a razão só reconhece como absolutamente necessário o que seja necessário pelo seu conceito. Porém, ambas as coisas não só excedem totalmente todos os esforços que podemos tentar para satisfazer o nosso entendimento, quanto a este ponto, mas também todas as tentativas para o tranqüilizar quanto a esta incapacidade.

A necessidade incondicionada de que tão imprescindivelmente carecemos, como suporte último de todas as coisas é o verdadeiro abismo da razão humana. A própria eternidade, por mais terrivelmente sublime que um Haller a possa descrever, está longe de provocar no espírito esta impressão de vertigem, porquanto apenas mede a duração das coisas, mas não as sustenta. Não podemos afastar nem tão-pouco suportar o pensamento de que um ser, que representamos como o mais alto entre todos os possíveis, diga de certo modo para consigo: Eu sou desde a eternidade para a eternidade; fora de mim nada existe a não ser pela minha vontade; mas de onde sou então? Eis que tudo aqui se afunda sob os nossos pés, e tanto a maior como a mais pequena perfeição pairam desamparadas perante a nossa razão especulativa, à qual nada custa fazer desaparecer uma e outra sem o menor entrave.

Muitas forças da natureza, que só através de certos efeitos manifestam a sua existência, continuam impenetráveis para nós, porque não podemos segui-las pela observação durante tempo suficiente. O objeto transcendental, que serve de fundamento aos fenômenos, e, a par deste, o princípio pelo qual a nossa sensibilidade está submetida a estas condições supremas e não a outras, são e continuam sendo para nós indecifráveis, embora a própria coisa seja dada, mas sem ser compreendida. Porém, um ideal da razão pura não pode considerar-se imperscrutável, porque não apresenta qualquer outra garantia da sua realidade além da necessidade que a razão tem de completar, por este meio, a unidade sintética. Se não é mesmo dado como objeto pensável, também não é, como tal, imperscrutável; antes deverá, como simples idéia, poder ter a sua sede na natureza da razão e aí encontrar solução, podendo ser, por conseguinte, perscrutado, pois que a razão consiste precisamente nisso, em podermos prestar contas de todos os nossos conceitos, opiniões e afirmações, quer seja mediante princípios objetivos, quer tratando-se de uma simples aparência, mediante princípios subjetivos.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Da impossibilidade de uma prova ontológica da existência de Deus

Immanuel Kant
Crítica da razão pura
Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão
Edição: Fundação Calouste Gulbenkian, 5. ed, Lisboa, 2001.

Só há três provas possíveis da existência de Deus para a razão especulativa

Todos os caminhos, pelos quais neste intuito se possa enveredar, partem da experiência determinada e da natureza particular do mundo dos sentidos, que ela dá a conhecer, e daí ascendem, segundo as leis da causalidade, até à causa suprema, residente fora do mundo; ou põem, empiricamente, como fundamento, apenas uma experiência indeterminada, isto é, uma existência qualquer; ou, finalmente, abstraem de toda a experiência e concluem, inteiramente a priori, a existência de uma causa suprema a partir de simples conceitos. A primeira prova é a prova físico-teológica, a segunda a cosmológica e a terceira a ontológica. Não há nem pode haver outras.

Demonstrarei que a razão nada consegue nem por uma das vias (a via empírica) nem pela outra (a via transcendental) e que em vão abre as asas para se elevar acima do mundo sensível pela simples força da especulação. Mas, no que respeita à ordem em que estas provas devem ser submetidas a exame, será precisamente a inversa da que segue a razão que se desenvolve pouco a pouco e na qual primeiro as apresentamos. Com efeito, ver-se-á que, embora a experiência forneça a primeira ocasião, é tão-só o conceito transcendental que guia a razão neste esforço e fixa em todas estas tentativas o objetivo que se propôs. Começarei, portanto, pelo exame da prova transcendental, para depois averiguar até que ponto a adição do empírico pode aumentar a sua força demonstrativa.

Da impossibilidade de uma prova ontológica da existência de Deus

Facilmente se depreende do que atrás dissemos, que o conceito de um ser absolutamente necessário é um conceito puro da razão, isto é, uma simples idéia, cuja realidade objetiva está ainda longe de ser provada pelo fato de a razão necessitar dela e que, aliás, não faz outra coisa que não seja indicar-nos uma certa perfeição inacessível, e que serve, na verdade, mais para limitar o entendimento do que para o estender a novos objetos. Depara-senos aqui algo de estranho e absurdo, que é parecer urgente e rigoroso o raciocínio que, de uma existência dada em geral, conclui uma existência absolutamente necessária, e serem contudo completamente adversas todas as condições que o entendimento exige para formar um conceito de uma tal necessidade.

Em todos os tempos se falou do ser absolutamente necessário, mas envidaram-se mais esforços para provar a sua existência do que para compreender como se poderá e até mesmo se se poderá pensar uma coisa desta espécie. Ora, é muito fácil dar uma definição nominal do que seja este conceito, dizendo que é algo cuja não-existência é impossível; mas nem por isso ficamos mais cientes das condições que tornam impossível considerar a não-existência de uma coisa como absolutamente impensável e que são, na verdade, aquilo que se pretende saber, isto é, se através desse conceito pensamos ou não em geral qualquer coisa. Porque rejeitar, mediante a palavra incondicionado, todas as condições de que o entendimento sempre carece para considerar algo como necessário, não me permite, nem de longe, ainda compreender se por este conceito de um ser incondicionalmente necessário ainda penso algo ou porventura já nada penso.

Bem mais: tem-se julgado, mediante grande porção de exemplos, explicar este conceito, ao princípio lançado temerariamente ao acaso e que, por fim, se tornou tão corrente que uma indagação ulterior acerca da sua inteligibilidade se afigurou completamente inútil. Toda a proposição da geometria, como por exemplo, que um triângulo tem três ângulos, é absolutamente necessária e assim se falava de um objeto, que está totalmente fora da esfera do nosso entendimento, como se se compreendesse perfeitamente o que se quer dizer com o seu conceito.

Todos os exemplos propostos são, sem exceção, extraídos unicamente de juízos, mas não de coisas e da sua existência. Porém, a necessidade incondicionada dos juízos não é uma necessidade absoluta das coisas. Porque a necessidade absoluta do juízo é só uma necessidade condicionada da coisa ou do predicado no juízo. A proposição acabada de citar não dizia que três ângulos são absolutamente necessários mas que, posta a condição de existir um triângulo (de ser dado), também (nele) há necessariamente três ângulos. Contudo, esta necessidade lógica demonstrou um tão grande poder de ilusão que, embora se tivesse formado o conceito a priori de uma coisa, de tal maneira que na opinião corrente a existência esteja incluída na sua compreensão, julgou-se poder concluir seguramente que, convindo a existência necessariamente ao objeto desse conceito, isto é, sob a condição de pôr esta coisa como dada (como existente), também necessariamente se põe a sua existência (pela regra da identidade), e que este ser é, portanto, ele próprio, absolutamente necessário, porque a sua existência é pensada conjuntamente num conceito arbitrariamente admitido e sob a condição de que eu ponha o seu objeto.

Se num juízo idêntico suprimo o predicado e mantenho o sujeito, resulta uma contradição e é por isso que digo que esse predicado convém necessariamente ao sujeito. Mas se suprimir o sujeito, juntamente com o predicado, não surge nenhuma contradição; porque não há mais nada com que possa haver contradição. Pôr um triângulo e suprimir os seus três ângulos é contraditório; mas anular o triângulo, juntamente com os seus três ângulos, não é contraditório. O mesmo se passa com o conceito de um ser absolutamente necessário. Se suprimis a existência, suprimis a própria coisa com todos os seus predicados; de onde poderia vir a contradição? Exteriormente, nada há com que possa haver contradição, porque a coisa não deverá ser exteriormente necessária; interiormente, nada há também, porque suprimindo a própria coisa, suprimistes, ao mesmo tempo, tudo o que é interior. Deus é Todo-poderoso, eis um juízo necessário. A onipotência não pode ser anulada, se puserdes uma divindade, ou seja, um ser infinito a cujo conceito aquele predicado é idêntico. Porém, se disserdes que Deus não é, então nem a onipotência nem qualquer dos seus predicados são dados; porque todos foram suprimidos juntamente com o sujeito e não há neste pensamento a menor contradição.

Vistes, pois, que, suprimindo o predicado de um juízo, juntamente com o sujeito, não poderá haver contradição interna, qualquer que seja o predicado. Não tendes, assim, outro remédio senão dizer que há sujeitos que não podem absolutamente ser suprimidos e que, por conseqüência, têm que subsistir, mas isto equivaleria a dizer que há sujeitos absolutamente necessários. Suposição esta cuja legitimidade me pareceu susceptível de ser posta em dúvida e cuja possibilidade me quisestes tentar mostrar. Com efeito, não posso formar o menor conceito de uma coisa que, mesmo suprimida com todos os seus predicados, ainda suscita contradição; e fora da contradição não tenho, mediante simples conceitos puros a priori, nenhum critério de impossibilidade.

Contra todos estes raciocínios gerais (a que ninguém se pode recusar) objetais-me com um caso que apresentais como prova de fato: que há, não obstante, um conceito, e na verdade só este, em que a própria não-existência é contraditória em si, isto é, não se poderia, sem contradição, suprimir o objeto e esse é o conceito do ser realíssimo. Possui ele, dizeis vós, toda a realidade e tendes o direito de admitir tal ser como possível (o que por ora consinto, embora a não-contradição do conceito esteja longe de provar a possibilidade do objeto)* . Ora, em toda a realidade está compreendida também a existência; a existência está pois contida no conceito de um possível. Por conseqüência, se esta coisa é suprimida, também se suprime a possibilidade interna da coisa, o que é contraditório.

Respondo eu: caístes em contradição ao introduzir no conceito de uma coisa, que vos propúnheis pensar apenas quanto à possibilidade, o conceito da sua existência, oculto seja sob que nome for. Se vos concedermos isto. tendes aparentemente ganho a partida, mas de fato nada dissestes, pois cometestes uma simples tautologia. Pergunto-vos: a proposição esta ou aquela coisa (que vos concedo como possível, seja qual for) existe, será uma proposição analítica ou sintética? Se é analítica, a existência da coisa nada acrescenta ao vosso pensamento dessa coisa e então, ou o pensamento dessa coisa que está em vós deveria ser a própria coisa ou supusestes uma existência como pertencente à possibilidade e concluístes, supostamente, a existência a partir da possibilidade interna, o que é uma mísera tautologia. A palavra realidade, que no conceito da coisa soa diferentemente de existência no conceito do predicado, não resolve esta questão. Porque se denominardes realidade a toda a posição (sem determinar o que se põe), já pusestes e admitistes como real, no conceito do sujeito, a própria coisa com todos os seus predicados, e no predicado só o repetis. Se, pelo contrário, reconhecerdes, como é justo que todo o ser razoável reconheça, que toda a proposição de existência é sintética, como podereis então sustentar que não se pode suprimir sem contradição o predicado da existência, se esta prerrogativa pertence especificamente à proposição analítica, cujo carácter assenta precisamente sobre ela?

Eu podia, sem dúvida, ter a esperança de refutar, sem mais rodeios, esta vã argúcia, mediante a rigorosa determinação do conceito de existência, se não tivesse descoberto que a ilusão de confundir um predicado lógico com um predicado real (isto é, com a determinação de uma coisa) quase exclui todo o esclarecimento. Tudo pode servir, indistintamente, de predicado lógico, e mesmo o sujeito pode servir a si próprio de predicado, porque a lógica abstrai de todo o conteúdo; mas a determinação é um predicado que excede o conceito do sujeito e o amplia. Não deve pois estar nele contida.

Ser não é, evidentemente, um predicado real, isto é, um conceito de algo que possa acrescentar-se ao conceito de uma coisa; é apenas a posição de uma coisa ou de certas determinações em si mesmas. No uso lógico é simplesmente a cópula de um juízo. A proposição Deus é omnipotente contém dois conceitos que têm os seus objetos: Deus e onipotência; a minúscula palavra é não é um predicado mais, mas tão-somente o que põe o predicado em relação com o sujeito. Se tomar pois o sujeito (Deus) juntamente com todos os seus predicados (entre os quais se conta também a onipotência) e disser Deus é, ou existe um Deus, não acrescento um novo predicado ao conceito de Deus, mas apenas ponho o sujeito em si mesmo, com todos os seus predicados e, ao mesmo tempo, o objeto que corresponde ao meu conceito. Ambos têm de conter, exatamente. o mesmo; e, em virtude de eu pensar o objeto desse conceito como dado em absoluto (mediante a expressão: ele é), nada se pode acrescentar ao conceito, que apenas exprime a sua possibilidade. E assim o real nada mais contém que o simplesmente possível. Cem talheres reais não contêm mais do que cem talheres possíveis. Pois que se os talheres possíveis significam o conceito e os talheres reais o objeto e a sua posição em si mesma, se este contivesse mais do que aquele, o meu conceito não exprimiria o objeto inteiro e não seria, portanto, o seu conceito adequado. Mas, para o estado das minhas posses, há mais em cem talheres reais do que no seu simples conceito (isto é na sua possibilidade). Porque, na realidade, o objeto não está meramente contido, analiticamente, no meu conceito, mas é sinteticamente acrescentado ao meu conceito (que é uma determinação do meu estado), sem que por essa existência exterior ao meu conceito os cem talheres pensados sofram o mínimo aumento.

Assim, pois, quando penso uma coisa, quaisquer que sejam e por mais numerosos que sejam os predicados pelos quais a penso (mesmo na determinação completa), em virtude de ainda acrescentar que esta coisa é, não lhe acrescento o mínimo que seja. Porquanto, se assim não fosse, não existiria o mesmo, existiria, pelo contrário, mais do que o que pensei no conceito e não poderia dizer que é propriamente o objeto do meu conceito que existe. Mesmo se pensar numa coisa toda a realidade, com exceção de uma só, pelo fato de dizer que tal coisa defeituosa existe, não lhe é acrescentada a realidade que lhe falta, mas existe precisamente tão defeituosa como quando a pensei; de outro modo, existiria uma coisa diferente da que foi pensada. Se, por conseguinte, penso um ser como realidade suprema (sem defeito), mantém-se sempre o problema de saber se existe ou não. Porque, embora nada falte ao meu conceito do conteúdo real possível de uma coisa em geral, falta ainda algo na relação com todo o meu estado de pensamento, a saber, que o conhecimento desse objeto também seja possível a posteriori. E aqui se mostra também a causa da dificuldade que reina neste ponto. Tratando-se de um objeto dos sentidos não poderia confundir a existência da coisa com o simples conceito da coisa. Porque, através do conceito só se pensa o objeto de acordo com as condições universais de um conhecimento empírico possível em geral, ao passo que, pela existência, o penso como incluso no contexto de toda a experiência; e embora o conceito do objeto não seja em nada aumentado pela ligação ao conteúdo de toda a experiência, mediante este o nosso pensamento recebe todavia a mais uma percepção possível. Se, pelo contrário, quisermos pensar a existência unicamente através da categoria pura, não admira que não possamos apresentar um critério que sirva para a distinguir da simples possibilidade.

Pode pois o nosso conceito de um objeto conter o que se queira e quanto se queira, que teremos sempre que sair fora dele para conferir existência ao objeto. Nos objetos dos sentidos isto sucede mediante o encadeamento com qualquer das minhas percepções, segundo leis empíricas; mas, nos objetos do pensamento puro, não há absolutamente nenhum meio de conhecer a sua existência, porque teria de ser totalmente conhecida a priori; porém, a nossa consciência de toda a existência (quer seja imediatamente proveniente da percepção ou de raciocínios que ligam algo à percepção) pertence inteira e totalmente à unidade da experiência e, muito embora se não possa considerar absolutamente impossível uma existência fora desse campo, é todavia uma suposição que nada tem a justificá-la.

O conceito de um ser supremo é uma idéia muito útil sob diversos aspectos; mas, precisamente porque é simplesmente uma idéia, é totalmente incapaz, por si só, de alargar o nosso conhecimento, relativamente ao que existe. Nem sequer consegue instruir-nos acerca da possibilidade de uma pluralidade de coisas. Não se lhe pode contestar o carácter analítico da possibilidade, que consiste no fato de as simples posições (realidades). não suscitarem contradição; porém, a ligação de todas as propriedades reais numa coisa é uma síntese, acerca de cuja possibilidade não podemos ajuizar a priori, porque as realidades não são dadas especificamente e, se o fossem, não se verificaria em parte alguma um juízo, porque o carácter da possibilidade de conhecimentos sintéticos tem de ser procurado sempre apenas na experiência, a que não pode pertencer o objeto de uma idéia; assim, o famoso Leibniz não realizou aquilo de que se ufanava: ter conseguido, como pretendia, conhecer a priori a possibilidade de um ser ideal tão elevado.

Por conseguinte, em vão se despendeu esforço e canseira com a célebre prova ontológica (cartesiana) da existência de um Ser supremo a partir de conceitos, e assim como um mercador não aumenta a sua fortuna se acrescentar uns zeros ao seu livro de caixa para aumentar o seu pecúlio, assim também ninguém pode enriquecer os seus conhecimentos mediante simples idéias.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

A improbabilidade de Deus

Richard Dawkins
Tradução: André Díspore Cancian
Fonte: Council for Secular Humanism

Muito do que as pessoas fazem é em nome de Deus. Irlandeses explodem uns aos outros em nome de Deus. Árabes explodem-se a si mesmos em seu nome. Imames e aiatolás oprimem mulheres em seu nome. Papas e padres celibatários interferem na vida sexual das pessoas em seu nome. Judeus shohets cortam a garganta de animais em seu nome. As conquistas históricas da religião – cruzadas sangrentas, inquisições torturantes, conquistadores genocidas, missionários destruidores de culturas e toda resistência possível contra o progresso científico – são ainda mais impressionantes. E qual é a parte positiva? Fica cada vez mais evidente que a resposta é “absolutamente nenhuma”. Não há motivos para acreditar na existência de quaisquer tipos de deuses, mas razões bastante boas para concluir que não existem e nunca existiram. Tudo foi apenas um gigantesco desperdício de tempo e vidas. Uma verdadeira piada de proporções cósmicas, se não fosse tão trágico.

Por que as pessoas acreditam em Deus? Para a maioria, a resposta ainda é alguma versão do antigo argumento do “projeto inteligente”. Nós olhamos a beleza e complexidade do mundo, a forma aerodinâmica da asa de uma andorinha, a delicadeza das flores e das borboletas que as fertilizam; através de um microscópio, vemos vida pulular numa pequena gota d'água, através de um telescópio, vemos a imensidão do universo. Nós refletimos sobre a complexidade eletrônica e sobre a própria perfeição óptica de nossos olhos. Se possuirmos um pouco de imaginação, tais coisas geram um senso de espanto e reverência. Ademais, não podemos deixar de perceber a óbvia semelhança entre nossos órgãos e os projetos cuidadosamente planejados pelos engenheiros humanos. A versão mais célebre desse argumento é a analogia com um “relojoeiro” feita pelo padre William Paley no século XVIII. Mesmo se não soubéssemos o que é um relógio, o caráter de suas engrenagens e molas e como elas se organizam com uma única finalidade nos levaria a concluir “que o relógio forçosamente teve um criador: assim, deve ter existido, em algum tempo e em algum lugar, um artífice, que o construiu com uma finalidade, que compreendeu seu funcionamento, que o projetou”. Se isso é verdade para um relógio relativamente simples, então imagine para um olho, ouvido, rim, fígado, cérebro. Essas lindas, complexas, intrincadas e obviamente pré-planejadas estruturas tiveram um projetista, tiveram seu “relojoeiro” – Deus.

Esse é um argumento que praticamente todas pessoas pensativas e sensíveis descobrem elas próprias em algum estágio de suas infâncias. Ao longo da maior parte da história ele provavelmente foi muito convincente, pois se auto-evidencia. No entanto, devido a uma das mais surpreendentes revoluções intelectuais da história, agora sabemos que é falso, ou ao menos supérfluo. Sabemos agora que o aparente “pré-planejamento” dos seres vivos deu-se através de processos inteiramente distintos, um mecanismo que prescinde de qualquer projetista e que é fruto de leis físicas muito simples: o processo da evolução das espécies através da seleção natural, descoberto por Charles Darwin e, independentemente, também por Alfred Russel Wallace.

O que todos esses objetos aparentemente projetados têm em comum? Improbabilidade estatística. Se encontrássemos um cristal transparente com o formato de uma lente rudimentar, não concluiríamos que foi projetado por um opticista: as leis da física por si mesmas são capazes de tal feito; não é muito improvável que esse cristal tenha apenas “acontecido”. Mas caso encontrássemos lentes compostas, cuidadosamente constituídas de modo a evitar aberrações esféricas e cromáticas, com proteção anti-reflexo e com as palavras “Carl Zeis” gravadas em sua lateral, saberíamos que elas não podem ser fruto do acaso. Pegando todos os átomos de tal objeto e jogando-os ao acaso sob influência das forças naturais da física, é teoricamente possível que, por pura sorte, os átomos venham a organizar-se no padrão das lentes compostas Zeiss. Mas o número de outras combinações atômicas igualmente possíveis seria tão absurdamente maior que podemos descartar totalmente a hipótese. O acaso está fora de questão como explicação.

Esse argumento não é circular. Entretanto, talvez pareça ser porque, poder-se-ia argumentar, todos os possíveis arranjos dos átomos são igualmente improváveis. Analogamente ao exemplo anterior, se uma bola de golfe cai especificamente sobre uma folha de gramínea, seria tolo dizer: “entre os bilhões de folhas sobre as quais ela poderia ter caído, acabou caindo justamente nesta. Que coincidência incrível!”. A falácia é, obviamente, que a bola obrigatoriamente precisa cair em algum lugar. Um evento desse tipo apenas seria surpreendentemente improvável se o especificássemos antes dele ocorrer: por exemplo, um homem vendado, sem referencial de direção, dá uma tacada a esmo e acerta o buraco de prima. Isso seria verdadeiramente admirável, pois a trajetória da bola foi definida a priori.

Entre todos os trilhões de modos diferentes de organizar os átomos de um telescópio, apenas uma minoria teria alguma utilidade. Apenas uma minúscula minoria possuiria as palavras “Carl Zeiss” gravadas, ou quaisquer outras palavras conhecidas pelo homem. O mesmo vale para o relógio: de todos os bilhões de possíveis combinações, apenas uma reduzidíssima quantidade mediria o tempo precisamente ou teria alguma outra utilidade. Isso se aplica, a fortiori, para nossos órgãos. Dentre todas as possíveis formas de organizar um corpo, apenas uma quantidade infinitesimal sobreviveria, lutaria por alimento e se reproduziria. Pode-se viver de muitas formas, é verdade: pelo menos dez milhões (se considerarmos o número de espécies distintas atualmente existentes). O fato é que, apesar de haver uma grande quantidade de formas através das quais podemos viver, certamente há uma quantidade esmagadoramente maior de formas através das quais não há vida alguma!

Podemos seguramente concluir que nossos corpos são demasiado complexos para terem surgido do acaso. Então como vieram a existir? A resposta é que o “acaso” entra na história, mas não apenas como um acaso simples e isolado. Em vez disso, incontáveis séries de pequenos acasos, minúsculas mudanças pequenas o suficiente para serem passíveis de ocorrência casual, foram ocorrendo uma após a outra em seqüência. Essas pequenas alterações casuais são advindas de mutações genéticas, mudanças aleatórias – erros de fato – no material genético. Elas dão origem às mudanças na forma corporal existente. Entretanto, a maioria dessas mudanças é prejudicial e acarreta a morte do indivíduo; uma minoria delas, contudo, é positiva, gerando um leve aperfeiçoamento, o que implica aumento na taxa de sobrevivência e reprodução. Através desse processo de seleção natural, as mudanças aleatórias que forem benéficas eventualmente tornar-se-ão predominantes. Agora o cenário está novamente pronto para outra mudança sutil. Após, digamos, mil dessas pequenas mudanças, cada uma servindo de base para a outra, o resultado final torna-se, pelo processo de acumulação, excessivamente complexo para surgir de uma só vez.

Por exemplo, é teoricamente possível que um olho tenha surgido do nada, num único golpe de sorte. É teoricamente possível que uma “receita” tenha sido “escrita” por uma grande quantidade de mutações gênicas. Se todas essas mutações ocorressem simultaneamente, um olho completo surgiria literalmente do nada. Apesar disso ser possível em teoria, na prática é inconcebível. A quantidade de sorte necessária é muito grande. A “receita correta” envolve uma enorme quantidade de genes concomitantemente, é uma combinação em particular entre trilhões de outras. Podemos, certamente, descartar a possibilidade de tal coincidência milagrosa. Mas é perfeitamente plausível que o olho moderno tenha surgido de algo parecido com ele, mas não igual: um olho levemente menos elaborado. Através do mesmo processo, esse “olho menos elaborado” surgiu de outro ainda menos sofisticado, e assim por diante. Admitindo uma quantidade suficiente de pequenas diferenças entre cada estágio evolucionário e seu predecessor, seria possível derivar o olho moderno do nada, simplesmente da pele. Quantos estágios intermediários podemos postular? Isso depende da quantidade de tempo disponível. Houve tempo suficiente para que os olhos evoluíssem passo a passo a partir do nada?

Os fósseis nos dizem que a vida vem evoluindo na Terra há mais de três bilhões de anos. É praticamente impossível à mente humana imaginar tal quantidade de tempo. Nós, naturalmente e felizmente, tendemos a achar que nossas vidas são bastante longas, apesar de provavelmente não vivermos nem um século. Nestes 2000 anos desde que Jesus viveu, o lapso de tempo foi grande o suficiente para obscurecer a distinção entre história e mito. Você pode imaginar uma quantidade de tempo um milhão de vezes maior? Suponha que desejássemos escrever toda a história num único pergaminho. Colocando toda a história depois de Cristo em um metro de pergaminho, quão longa seria a parte correspondente à era pré-cristã, desde o começo da evolução? A resposta seria a distância entre Milão e Moscou. Pense nas implicações disso em relação à quantidade de possíveis mudanças evolucionárias. Todas as raças de cachorros domésticos – pequineses, poodles, são bernardos e chiuauas – originaram-se dos lobos há uma quantidade de tempo que pode ser medida em centenas ou no máximo milhares de anos: não mais que dois metros na estrada entre Milão e Moscou. Pense na quantidade de diferenças entre um lobo e um pequinês, agora multiplique essa quantidade por um milhão. Vendo por esse prisma, fica fácil acreditar que o olho moderno poderia ter surgido gradualmente, passo a passo.

Continua sendo necessário, para que tal explicação seja plausível, que todos os intermediários do processo evolucionário, digamos, da pele até o olho moderno, tenham sido favorecidos pela seleção natural; haveria uma sofisticação gradual sobre seu predecessor, ou ao menos ele teria sobrevivido. Não teria muito valor provar apenas em teoria que houve uma cadeia de intermediários levemente distintos que desembocou no olho moderno, se muitos desses intermediários acabassem morrendo. Alguns argumentam que todas as partes do olho precisariam estar juntas e organizadas ou ele não funcionaria em absoluto. Meio olho, segundo esse argumento, é tão útil quanto nenhum. Não se voa com meia asa; não se ouve com meio ouvido. Assim sendo, não poderia haver uma série gradual de intermediários que resultaria no olho, asa ou ouvido modernos.

Esse argumento é tão ingênuo que apenas fico a imaginar quais são os motivos subconscientes que levam uma pessoa a defendê-lo. Meio olho, obviamente, não é inútil. Indivíduos com catarata que tiveram seus cristalinos removidos cirurgicamente não podem enxergar bem sem óculos, mas se estivessem cegos seria muito pior. Sem o cristalino é impossível focalizar uma imagem detalhadamente, mas ainda assim pode-se evitar colisões com obstáculos e também detectar a sombra de um possível predador.

O argumento de que não se pode voar com meia asa é contestado pelo grande número de animais planadores muito bem-sucedidos, incluindo muitos tipos de mamíferos, lagartos, sapos, cobras e lulas. Muitos animais que vivem em copas de árvores têm membranas entre suas juntas que realmente funcionam como semi-asas. Quando caem de uma árvore, o aumento da superfície de contado proporcionado pelas membranas pode significar a diferença entre a vida e a morte. Sejam as membranas grandes ou pequenas, sempre haverá uma altura crítica na qual elas podem salvar-lhes a vida. Assim, quando seus descendentes desenvolveram essa “superfície extra”, passou a haver um menor índice de mortes, pois sobreviviam mesmo se caíssem de alturas maiores. Desse modo, através de incontáveis mudanças quase imperceptíveis, chegamos-se às asas atuais.

Olhos e asas não “brotam” de uma só vez. Isso seria tão improvável quanto acertar a combinação de um grande cofre bancário. Mas, se formos girando o painel do cofre ao acaso, e a cada vez que acertássemos a posição, a porta se abrisse um pouco mais, rapidamente conseguiríamos destrancá-lo. É esse o “mecanismo secreto” através do qual evolução pela seleção natural alcança o que, a princípio, parecia impossível. Coisas que não podem ser plausivelmente derivadas de predecessores muito distantes podem plausivelmente ser derivadas de predecessores levemente diferentes. Se houver uma série longa o suficiente dessas mudanças sutis, uma coisa pode dar origem a qualquer outra.

A evolução, então, é teoricamente capaz de fazer o que, a princípio, parecia uma prerrogativa de Deus. Mas há evidências de que a evolução ocorreu? A resposta é sim; as evidências são esmagadoras. Milhões de fósseis são encontrados exatamente nos locais e profundidades calculadas caso a evolução tivesse ocorrido. Jamais foi encontrado um fóssil que serviu de evidência contra a teoria da evolução: a descoberta de um mamífero incrustado em rochas mais antigas que os peixes, por exemplo, seria suficiente para refutar o evolucionismo.

Os padrões de distribuição dos animais e plantas nos continentes e ilhas são exatamente os previstos caso houvessem evoluído de um ancestral comum através de um processo lento e gradual. Padrões de semelhança entre animais e plantas são exatamente os esperados caso tivessem parentesco próximo a alguns e distante a outros. O fato de o código genético ser o mesmo em todas as criaturas sugere fortemente que descendemos de um ancestral comum. As evidências da evolução são tão contundentes que o único modo de “salvar” a teoria criacionista seria argumentar que Deus, deliberadamente, plantou enormes quantidades de evidências para nos enganar, fazendo com que a evolução apenas parecesse ter acontecido. Em outras palavras, os fósseis, a distribuição geográfica dos animais e assim por diante, são apenas um grande truque. Alguém gostaria de adorar um Deus capaz de tal feito? É certamente mais sensato, além de cientificamente coerente, aceitar as evidências: todas as criaturas possuem parentesco e descendem de um ancestral remoto que viveu há mais de três bilhões de anos.

O argumento do projeto foi destruído como justificativa para a crença em Deus. Há outros argumentos? Algumas pessoas crêem em Deus devido ao que julgam ser uma “revelação interna”. Tais revelações não são sempre edificantes, mas indubitavelmente parecem reais. Muitos pacientes de manicômios crêem efetivamente que são Napoleão Bonaparte ou Deus em pessoa. Não há dúvida quanto ao poder que tais convicções exercem sobre eles, mas não existem motivos para que o resto de nós acredite nisso. Na verdade, se várias crenças se contradizem mutuamente, não podemos aceitá-las em absoluto.

Um pouco mais precisa ser dito. A evolução através da seleção natural explica muitas coisas, mas não pode ter surgido do nada. A evolução não poderia existir até que houvesse algum tipo, mesmo que rudimentar, de reprodução e hereditariedade. A hereditariedade moderna baseia-se no DNA, o qual é excessivamente complexo para ter surgido espontaneamente. Isso indica que provavelmente deve ter existido algum tipo de sistema hereditário – agora extinto – simples o suficiente para surgir do acaso e de leis químicas, que proporcionou o meio no qual a forma primitiva da seleção natural cumulativa poderia iniciar-se. O DNA foi apenas um produto de tal seleção.

Antes dessa “seleção natural primitiva”, houve um período no qual compostos químicos complexos eram formados a partir de compostos simples e, antes disso, os elementos químicos foram construídos de outros ainda mais simples; tudo muito bem explicado por leis físicas. E ainda antes disso, logo após o big-bang – que deu início ao universo –, praticamente tudo era formado por hidrogênio.

Há uma tentação para argumentar que, apesar de Deus não ser necessário para explicar como a intrincada organização do universo – que se deve fundamentalmente a leis físicas – começou, precisamos de Deus para explicar a origem de todas as coisas. Tal visão não deixa para Deus muitas funções: ele apenas daria início ao big-bang e esperaria tudo acontecer. O físico-químico Peter Atkins, em seu maravilhoso livro “A criação”, postula que o “Deus indolente” esforçou-se para fazer o mínimo de trabalho possível na criação do universo. Atkins explica como cada passo na história do universo prosseguiu, através de simples leis físicas, de seu predecessor. E assim demonstrou que a quantidade de esforço que o “criador preguiçoso” precisaria ter despendido seria, de fato, zero.

Os detalhes sobre as fases iniciais do universo concernem ao âmbito da física, e já que sou biólogo, estou mais preocupado com fases subseqüentes da complexidade evolucionária. Para mim, o importante é que, mesmo sendo necessário postular um mínimo irredutível que precisaria estar presente no começo de tudo para que as coisas se iniciassem, esse mínimo irredutível, com certeza, seria extremamente simples. Por definição, explicações fundamentadas em premissas simples são mais plausíveis e satisfatórias que teorias segundo as quais é necessário postular eventos complexos e estatisticamente improváveis, e certamente não se pode pensar em nada muito mais complexo e improvável que um Deus todo-poderoso.
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